As memórias de Vítor Cândido ‘Dobradinha da liberdade’

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Foi há 50 anos. O povo andava radiante. A cada golo, o público invadia o relvado para abraçar os jogadores. E o árbitro esperava que todos saíssem para reatar o jogo.

No domingo passado, dia 9 de Junho, completaram-se cinquenta anos da conquista da famosa dobradinha da liberdade, conseguida pela equipa de futebol do Sporting, então comandada pelo treinador Mário Lino. Foi no primeiro ano do “reinado” do presidente João Rocha. O país vivia ainda os primeiros dias da denominada Revolução dos Cravos, a revolta militar do 25 de Abril. De certo modo pacífica. O povo andava numa euforia extraordinária, extravasando de alegria pela liberdade conquistada. É indescritível e memorável a forma como todos vivemos o primeiro 1º de Maio em liberdade.

A população, de todas as idades, veio para a rua festejar o Dia do Trabalhador. A multidão andava a pé, pelas ruas e avenidas da capital. Milhares de pessoas, mesmo os mais despolitizados, encheram os locais dos comícios como, por exemplo, a Alameda D. Afonso Henriques e o Estádio 1º de Maio, do INATEL. Também lá andei, feliz da vida, com a minha Fernandinha. Tínhamos um ano de casados, e ainda sem filhos, havia a ilusão de que a nossa vida iria ser mais próspera e favorável. Com o 25 de Abril acabou-se a opressão. E terminou a Guerra Colonial, na qual passei dois anos da minha juventude, no norte de Moçambique.

Vítor Damas com António Spínola

Curiosamente, a queda do antigo regime político coincidiu com a emergência de uma equipa vitoriosa do Sporting, capaz de suplantar a poderosa formação do Benfica (de Eusébio, Simões, Humberto Coelho, Toni, Nené, Vítor Batista, Rui Jordão…), cuja hegemonia lhe conferiu 11 campeonatos em 15 anos. Ou seja, a cada três títulos do Benfica, o Sporting vencia um (1962, 1966, 1970, 1974), impedindo, assim, o tetra das águias. Foi o que aconteceu neste ano da liberdade. Porque, apesar de ter perdido os dois jogos com o Benfica: 0-2, no Estádio da Luz; e 3-5 no Estádio José Alvalade (31 de Março, com Marcelo Caetano na tribuna), o Sporting ganhou o campeonato nacional ao derrotar o Barreirense (3-0) na última jornada (19 de maio), no Campo D. Manuel de Melo, no Barreiro.

O jogo onde Hector Yazalde marcou o seu golo 46, estabelecendo novo máximo europeu e conquistando a Bota de Ouro da Europa. No final do jogo foi uma loucura de entusiasmo, com o pessoal no relvado a festejar com os jogadores. Todavia, para a época ser mais brilhante, ainda faltava vencer a final da Taça de Portugal e conquistar a dobradinha. O que viria a acontecer. Para gáudio dos sportinguistas. Para mais contra o rival Benfica, desejoso de se desforrar do desaire no campeonato. O Sporting apresentou-se sem o seu goleador Hector Yazalde, porque já tinha ido para a seleção da Argentina, a fim de participar no Mundial-74. E sem o comandante Mário Lino porque, em desacordo com as diretrizes da presidência, no que respeita a reforços e digressões, foi demitido horas antes desta final. O seu adjunto, Osvaldo Silva, tomou conta da equipa e safou-se bem.

Recordo ter sido um jogo muito intenso e disputado. O Benfica marcou cedo (lance de Rui Jordão, concretizado por Nené) e soube controlar as operações. E já se pensava que a Taça ia mesmo parar ao Estádio da Luz. Mas no futebol tudo pode acontecer e, quando os seus apaniguados já faziam a festa… os leões chegaram ao empate (golo de Chico Faria) no último minuto, transferindo a animação e os festejos para as hostes leoninas. Com emoção redobrada, o jogo foi para prolongamento. E parece que ainda estou a ver a excelente jogada de Chico Faria que, em velocidade, sentou Humberto Coelho e serviu Marinho para este marcar o golo da dobradinha da liberdade. Foi aos 107 minutos, na baliza norte… do Estádio Nacional a abarrotar, com gente colocada em redor do relvado e junto às balizas. O povo andava radiante. A loucura dos festejos leoninos, verificada no primeiro golo, voltou a acontecer. Nas duas vezes, o público invadiu o relvado para abraçar os jogadores. Com o árbitro, César Correia (AF Faro) a ter de esperar que todos saíssem do relvado para reatar a partida. Adivinhava-se a vitória e, por isso, a excitação cada vez mais frenética. A revolução do PREC estava bem presente e bem viva. Liberdade total. No final da partida, outra vez a invasão… pacífica. Enquanto o capitão, Vítor Damas, subia à tribuna de honra do estádio para receber a Taça de Portugal, das mãos do Presidente da República, António Spínola.

A importância de  Dé

Sem dúvida, a época 1973/74 é para recordar eternamente. De tal forma, que o antigo futebolista brasileiro Dé (Domingos Elias Pedra) decidiu vir nesta altura, de férias a Portugal, para comemorar os 50 anos da dobradinha da liberdade. Para tal, contatou o seu amigo Vagner Canotilho para convocar os antigos companheiros no intuito de festejarem o meio século desta efeméride. Infelizmente, alguns desses campeões já partiram: Vítor Damas, Chico Faria, Yazalde, Dani, Joaquim Rocha, Vitorino Bastos e Carlos Alhinho. E a mim pediu-me que levasse o ‘mister’ Mário Lino: «O melhor treinador da minha carreira» disse Dé, quando o viu chegar comigo ao restaurante, em Setúbal. E, com enorme emoção, fez-lhe uma vénia, seguida de um longo e sentido abraço. Recordo que este categorizado futebolista carioca, proveniente do Vasco da Gama, chegou ao Sporting em Fevereiro de 1974, numa altura em que a equipa estava desfalcada de alguns jogadores importantes como, por exemplo, Fraguito e Laranjeira, ambos lesionados com gravidade e operados em Londres. Dé foi uma contratação do presidente João Rocha. Só esteve dez meses no clube e, em tão pouco tempo, ganhou uma dobradinha. Começou a jogar em março e, segundo o próprio Mário Lino afirmou, foi muito importante para as conquistas na fase final da temporada. Porque trouxe algo diferente à equipa. Com boa técnica, velocidade e golo, o treinador arranjou-lhe uma brecha para ele entrar no onze… com Dinis. E foi campeão. Porém, a sua influência na equipa verificou-se nos jogos da Taça de Portugal. Especialmente no jogo com o Belenenses (2-1, dois golos seus). «Sabe? Fiz o primeiro golo da liberdade!», disse Dé, com orgulho. «Foi no dia 28 Abril, no primeiro jogo após a revolução, três dias depois do regresso da viagem atribulada, de Magdeburgo para Lisboa», concluiu. Foi há cinquenta anos. Como o tempo passa. Era no tempo dos Vapores do Rêgo, o grupo de batucada brasileira, que transmitia sempre grande animação aos jogos.     

Fonte: A Bola

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