Ver o fim no espelho

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Cristiano Ronaldo continuará a ser um dos melhores atletas da história do desporto, pelo menos enquanto a espécie humana não atingir um novo estado evolutivo

Em 2021, numa entrevista à publicação Esquire, Kylian Mbappé, o melhor futebolista da sua geração e futuro vencedor de seis ou mais Ligas dos Campeões ao serviço do Real Madrid, explicou tudo com a inteligência de processos simples que o caracteriza dentro e fora de campo. Quando questionado acerca dos ídolos que vieram antes dele, Kylian, então já campeão do mundo pela seleção francesa, disse o seguinte: «Se te convenceres que és superior a Messi e Ronaldo, isso vai para lá do ego ou da determinação. É falta de noção. Estes jogadores são incomparáveis, desafiaram todas as leis da estatística.»

Já tudo foi dito sobre Messi ou Ronaldo, mas não me lembro de alguém os ter descrito adequadamente, pelo menos não à semelhança de uma proeza do falecido escritor David Foster Wallace, autor de uma peça quase mitológica, publicada pelo New York Times em 2006, intitulada ‘Roger Federer as religious experience’ (Roger Federer enquanto experiência religiosa). Ao longo de uma extensa reflexão, Foster Wallace, um amante da modalidade, explica-nos, com uma minúcia descritiva própria da sua escrita, com um talento irredutível no cronismo do desporto, a dimensão material, física, absolutamente concreta do ténis de Roger Federer, o que isso significa no contexto de uma modalidade praticada por milhões de pessoas e o que significa no contexto das representações estéticas ao alcance do corpo humano.

Foster Wallace dedica-se arduamente à descrição da realidade para, com as suas palavras, fazer a atuação de Federer ascender ao patamar sobrenatural, esteticamente inatingível, de tenista favorito de todos os amantes do ténis, e musa inspiradora de David Foster Wallace. O texto atinge o seu momento mais memorável com a expressão, cunhada na perfeição e usada desde então: Federer Moments (momentos Federer). Coisas que só o tenista suíço era capaz de fazer acontecer e uma experiência superior, neste caso do observador, que só Federer poderia dar a conhecer.

Infelizmente, Foster Wallace não sobreviveu tempo suficiente para assistir ao declínio de Roger Federer e explicá-lo enquanto figura novamente terrena. Não sei o que diria sobre o caminho inevitável do suíço na direção do fim, mas foi de Federer e de Foster Wallace que me lembrei há uns dias quando, depois de um jogo ao qual dificilmente teria assistido em direto – a final de uma taça na Arábia Saudita – vi um dos melhores futebolistas de sempre chorar copiosamente. Não acompanhei a evolução do marcador, não sabia qual tinha sido o resultado final, e tenho feito um esforço muito consciente para evitar o futebol da Arábia Saudita após uma tentativa gorada há alguns meses.

Continuei a fazer scroll no Twitter e os vídeos de Ronaldo repetiam-se, uns em que ele chorava deitado no relvado, outros dele já no banco de suplentes, mal escondido por alguns funcionários do Al Nassr incumbidos de proteger a privacidade de Ronaldo num momento de particular tristeza.

Fez-me lembrar outros momentos tristes da carreira de Ronaldo, em que também o vimos reagir sem conter as emoções. Mas desta vez não vi o homem que chorava mas se recompunha porque sabia que ainda tinha tudo pela frente. Desta vez vi um homem a braços com o destino mal resolvido. Lembrei-me do quão perto está o final da sua carreira e do quanto atletas como Cristiano Ronaldo são obrigados a existir muito mais na sua cabeça do que por via da empatia dos outros. Não faço ideia do que é ser Cristiano Ronaldo. Não consigo colocar-me no seu lugar.

É muito fácil que alguém se possa solidarizar com a circunstância menos feliz de Ronaldo, como faço aqui, mas não sei verdadeiramente explicar o que ele sente. O lugar solitário em que o encontrei na final da King’s Cup é o lugar solitário de alguém que atingiu um cume de desempenho desportivo que, golo a golo, feito impensável após feito impensável, o separou do mundo.

É o mesmo lugar solitário de quem hoje não consegue aceitar o seu voo descendente da estratosfera até à superfície terrestre. Cristiano trabalhou freneticamente para tudo o que conseguiu e aprendeu a viver sozinho. Pareceu sempre feliz na sua condição, até o corpo deixar de responder e a realidade o trazer de volta. Cristiano continua a publicar fotos no instagram para mostrar que é esculpido e tem tudo para ser imensamente feliz, mas suspeito que a realidade será um pouco diferente quando se nasceu essencialmente para vencer e para viver num lugar longínquo, simultaneamente à vista de todos mas inacessível. Hoje, Cristiano sabe que não tem muitas mais finais pela frente. Olha-se no espelho e vê um fim.

O corpo e a mentalidade patologicamente competitivas continuam a lutar contra o crepúsculo, mas o fim está próximo. E foi esse o homem que vi chorar após mais uma taça perdida. Mas, se existe alguém que sempre pareceu capaz de contrariar a realidade, foi ele. Espero que o destino lhe permita terminar com uma taça, quem sabe ao serviço do seu país. Mas, aconteça o que acontecer, Cristiano Ronaldo continuará a ser um dos melhores atletas da história do desporto, pelo menos enquanto a espécie humana não atingir um novo estado evolutivo. Fez o que só Messi conseguiu e o que, como diz Kylian Mbappé, mais ninguém conseguirá. A sua biografia perdurará em incontáveis Ronaldo Moments, como os de Federer. Mas não deixa de ser irónico, e triste, que a única pessoa incapaz de aceitar isso seja mesmo ele.

Fonte: A Bola

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