«A facilidade com que Otamendi disse um conjunto de coisas essenciais, daquelas que se explicam aos adeptos do maior clube de Portugal quando as coisas não correm bem». ‘Selvagem e sentimental’, por Vasco Mendonça.
As coisas chegaram a parecer melhores. Houve um breve período em que algum sucesso desportivo, a par de uma esperança mais assente em alguma ingenuidade do que na razão, ajudaram a mascarar os problemas estruturais que nunca deixaram de condicionar o Benfica. Mas o tempo encarregou-se de trazer de volta os sintomas mais visíveis de uma doença que nunca abandonou o corpo. Tem cura, mas vai levar um tempo.
Cortar fitas não é ser presidente
É uma imagem muito familiar na perceção que a comunicação social e o eleitorado português partilham acerca de um certo tipo de liderança política, mais reconhecida por inaugurar coisas do que por as pensar e levar efetivamente a cabo. O talento do corta-fitas é confirmado pela qualidade com que produz propaganda, não pela sua real capacidade executiva. Mas encontramos esse perfil em outros contextos, por exemplo no marketing, área em que trabalho há alguns anos. Uma das minha grandes referências profissionais neste trabalho disse-me uma vez que alguns criativos publicitários que ele conhecera ao longo da carreira, pessoas pagas para veicular mensagens suficientemente boas para serem notadas, tinham afinal como maior mérito o facto de terem estado na sala certa, à hora certa, no dia certo, quando uma boa ideia de outros fora apresentada. Não tendo sido eles os autores da ideia, souberam identificar uma daquelas ondas que não passam muitas vezes e surfaram-na adequadamente. Alguns construíram carreiras inteiras quase exclusivamente com base no dom de saberem posicionar-se para apanhar a onda. Não faz de nenhuma destas pessoas um criminoso, mas também não fará de nenhuma delas um grande criativo publicitário. Eu sei que não parece, mas esta história é sobre o campeão nacional de voleibol e sobre um certo estilo de liderança que é mais notado quando há fitas para cortar, ou, neste caso, troféus para erguer.
Tendo a desconfiar deste estilo de liderança e o meu tempo passado a olhar para o fenómeno diz-me que só há um verdadeiro teste que separa os líderes capazes dos demais. É saber como respondem nos momentos de adversidade. Eu não sou especialista em física, mas vou observando e tirando conclusões. No que toca aos especialistas em corte de fitas, o seu défice de competência, quando confrontados com circunstâncias difíceis, tende a subir à tona. Podemos enganar todas as pessoas por algum tempo e algumas pessoas durante todo o tempo, mas dificlmente enganaremos todo o mundo por todo o tempo. Ao responsável pelo corte de fitas, ou a quem determina que as suas únicas aparições públicas sejam essas, deixo uma sugestão: seria bom que aquela pessoa vista a celebrar efusivamente a vitória no vólei este passado fim de semana revelasse a mesma energia quando as coisas não correm bem. Se a ideia do presidente do Benfica é só aparecer quando o clube conquista taças, então devia fazer muito, mas muito mais para as conquistar.
Se assim não for, corremos o risco de passar a acompanhar as conferências de imprensa de um treinador e pensar até que é ele o presidente, dado o volume de afirmações categóricas que faz ocupando o enorme espaço deixado vazio pelo silêncio de quem o contratou. Isso, ou podemos concluir simplesmente que o Benfica tem um presidente ausente, que é como quem diz, não o tem. É um pouco assustador ser forçado a constatar isto por força da ausência de reação ou, a avaliar pelos sinais de fumo que vão chegando, do fosso que separa uma liderança da realidade. Se lhe juntarmos um treinador de futebol que aparenta estar disposto a barricar-se no Benfica, ou, pior ainda, que parece estranhamente alinhado com a atual direção, o cenário torna-se ainda mais preocupante.
Mas é pior. Este domingo, depois de uma derrota em que mais uma vez treinador e equipa pareceram incapazes de mostrar os progressos esperados desde julho do ano passado, soubemos ainda que parte do silêncio dos últimos meses não aconteceu por falta de coisas para dizer, mas por deliberação de quem manda no clube. Depois de meses a sermos informados sobre a paz e a harmonia do balneário, o capitão Otamendi foi à flash interview para reconhecer aquilo que toda a gente sabe e ninguém parece capaz de dizer, nem mesmo o treinador que, já em fase de lucidez questionável, explica que fizemos uma boa época. Explica Otamendi que já queria ter dito alguma coisa antes, mas que não lhe foi permitido dirigir-se aos benfiquistas. A facilidade com que Otamendi disse um conjunto de coisas essenciais, daquelas que se explicam aos adeptos do maior clube de Portugal quando as coisas não correm bem, e o facto de ter esclarecido que já queria ter dito tudo aquilo há mais tempo, não nos diz que só agora era o momento de dizer aquelas coisas aos benfiquistas. Mais do que silêncio, denuncia uma estratégia de silenciamento que cava uma distância entre nós e eles. Quando a figura que mais vezes se pronuncia sobre o estado do Benfica é um treinador que repetidamente revela não compreender o Benfica, é porque alguém desistiu de comandar ou simplesmente não sabe como o fazer. É isto que acontece quando não há mais fitas para cortar e se nega os sinais evidentes de uma doença de longa data. Há quem, perante estas circunstâncias, procure a cura. E depois há quem acenda mais um cigarro para o ver arder. Até quando, Benfica?
Fonte: A Bola