Líder em Londres da agência para saúde sexual e reprodutiva da ONU avalia desafios globais

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Atuando há décadas em temas de direitos humanos e gênero, Mónica Ferro avalia que suas experiências a levaram a ocupar posições de liderança no Fundo de População das Nações Unidas, Unfpa, que a levaram a estar Londres.

Com uma carreira que abrange tanto a academia quanto o Parlamento português, Mónica Ferro enfatizou como seu foco em questões populacionais e de gênero moldou o percurso profissional. Ela ressaltou a necessidade de investimentos em saúde sexual e reprodutiva como fundamental para o desenvolvimento de um país e refletiu sobre a importância de garantir dignidade e eliminar formas de violência contra grupos vulneráveis.

ONU News: Olá, Mónica. Vamos começar falando um pouco sobre sua carreira, sua trajetória no Fundo de População da ONU, Unfpa. Há algum tempo você estava em Genebra e hoje está em Londres. Como foi sua trajetória?

Mónica Ferro; Bom, eu diria que é quase obrigatório quando se trabalha para o Fundo das Nações Unidas de População, circular, ou seja, nós vamos adquirindo competências e saberes numa parte do trabalho da organização e de uma parte do mundo, e passados alguns anos temos que ir crescer, usar esses conhecimentos, mas é crescer a outra parte. Eu estive de facto, como bem diz, seis anos e meio em Genebra a fazer sobretudo direitos humanos, questões humanitárias, questões de trabalho, questões de saúde global. É um lugar muito interessante do ponto de vista do posicionamento da agenda global do Fundo das Nações Unidas para a População, naquela que é a capital mundial da saúde, dos direitos humanos e das questões humanitárias. E ao fim dessa passagem, que foi para mim um processo de aprendizagem absolutamente extraordinário, chegou a altura de ir aprender e exercer as minhas competências noutro sítio. E agora estou aqui em Londres, onde tenho um trabalho ligeiramente diferente, mas para mim pareceu-me que seria uma adição interessante na minha carreira. No fundo, sozinhos com a população, ou seja, depois de depois de um papel de grande negociadora de direitos humanos e de saúde global e questões humanitárias, agora exerço esse papel junto de governos, tentando mostrar a importância do apoio político e do investimento nestas áreas e, portanto, tento aqui no Reino Unido, abrir uma janela para aquilo que é o trabalho do Fundo das Nações de População no terreno e no Reino Unido, na Irlanda, em Portugal, na Espanha e na Itália.

ONU News: Como é que o foco em população foi moldando o percurso da sua carreira, profissional na academia e agora?

Mónica Ferro: Essa questão é muito interessante. Eu noutro dia dei por mim a pensar que parece que quase tudo o que eu fiz me trouxe até este lugar que eu tenho, ou seja, eu tenho de facto o meu passado profissional é na universidade, de onde eu venho, da área das relações internacionais, ensinando muito matérias ligadas às organizações internacionais, à cooperação para desenvolvimento, aos direitos humanos, sempre com umas lentes de género. Ou seja, eu sempre me preocupei em ver os temas que eu estudava do ponto de vista do impacto diferenciado das políticas e dos programas nas mulheres, nos jovens e nas outras pessoas que pertencem a grupos que podem estar em situação de vulnerabilidade, vamos dizer assim. Depois há o desafio de ir ao Parlamento, de ser candidata à Assembleia da República, que abracei com muito orgulho, e fui eleita quando me candidatei. Depois, no Parlamento, tornei-me coordenadora do Grupo Parlamentar sobre Populações e o Desenvolvimento. Ou seja, pude trazer para a Assembleia da República, e coordenar dentro da Assembleia da República, toda esta agenda do Fundo das Nações Unidas para a População. Ou seja, esta ideia de que o investimento na saúde sexual e reprodutiva é absolutamente fundamental para o desenvolvimento de um país. Não há desenvolvimento se não houver uma boa saúde materna. Não há desenvolvimento se não houver eliminação das várias formas de violência contra as mulheres, contra os jovens, contra as pessoas portadoras de deficiência, contra as pessoas mais velhas. Toda a agenda das Nações Unidas. E depois, a minha experiência política, porque a democracia tem destas coisas, uma vez somos eleitos, outra vez nós somos eleitos, voltei para a universidade e depois candidatei-me a este lugar junto das Nações Unidas, em Genebra, e fui selecionada. Mas é muito interessante pensar que o que eu fui estudando, o que eu fui fazendo, de uma certa forma, de várias formas, me preparou para aquilo que havia de ser a minha carreira. Hoje eu digo que faço exatamente a mesma coisa, mas noutro sítio. Luto pelas mesmas causas, mas noutros fóruns.

ONU News: A partir de toda essa experiência que você teve tanto em Portugal quanto nas Nações Unidas, quais são os desafios que devem ser priorizados para fechar essas lacunas de desigualdade que a gente tem hoje?

Mónica Ferro: Essa pergunta é tão importante no contexto que estamos a viver hoje. Não só porque estamos num contexto de crise em que os conflitos, as alterações climáticas, a pobreza, o sexismo ou racismo, não só não nos permitem garantir dignidade para todos, como, de uma certa forma, nos tem feito com que deixemos aquelas pessoas que estavam para trás, algumas delas ficaram ainda mais para trás. E este até é o tema do relatório do Fundo das Nações de População, foi lançado agora em abril, o “Fios de Esperança”. Nós queríamos exatamente passar esta mensagem: [00:06:29]que desigualdade, se não for trabalhada de uma forma multissetorial, ou seja, se nós não desconstruirmos os fatores que mantêm a desigualdade, que fazem com que a desigualdade perdura. E eu já falei do sexismo, da pobreza estrutural, do racismo, da discriminação contra pessoas porque se afirmam com uma determinada identidade. Se não o fizermos, se não fizermos os investimentos certos, não estamos não só a não realizar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, como estamos a perpetuar a desigualdade. Portanto, o que é preciso é não só este trabalho que o Fundo das Nações Unidas para a População faz de mostrar quem são as pessoas, onde estão as pessoas. Nós tentamos fornecer, sempre que possível, dados e recomendações políticas para a ação que permitam de facto, chegar às pessoas e garantir a tal dignidade para todos. Mas implica também muitos investimentos. E nós não podemos dizer que o mundo não tenha recursos para fazer esses investimentos. Muitas vezes o que falta é saber o que funciona e alguma vontade política, arrisco a dizer alguma vontade política. 

ONU News: Vamos olhar para os próximos cinco anos. Até que ponto é que acredita que as metas populacionais possam ser alcançadas?

Mónica Ferro: Eu tenho muitas reservas, embora eu seja uma otimista informada, ou seja, eu tenho bem consciência da realidade em que temos que agir. Mas o meu ponto de partida é otimista. Ou seja, eu vou dar um exemplo muito concreto que nós falamos no nosso relatório: desde 1994, quando se fez a Conferência do Cairo, a mortalidade materna reduziu se em 34%, que é absolutamente brilhante, 34%. No entanto, desde 2016 que a taxa de redução é zero. Ora, nós sabemos o que é que resulta, como é que se elimina a mortalidade materna. Nós sabemos que das 800 mulheres que morrem todos os dias por causas ligadas à gravidez, parto ou pós-parto, 500 delas em contextos humanitários, em crises humanitárias, nós sabemos como salvar estas vidas. Portanto, nós hoje temos identificadas quais é que são as boas práticas, os investimentos que se tem que fazer para se cumprir os ODS. É claro que é preciso que haja paz. É preciso que, como diz o engenheiro António Guterres, o secretário-geral, nós tiremos o pé do acelerador nesta caminhada para o desastre climático, como ele chama, “o inferno climático”. Todos nós sabemos o que é preciso fazer e o que falta, de fato, é não só a consciência de pode ser feito, como a noção de que há um cardápio de políticas e de programas que passam por trazer as pessoas para a mesa das negociações. [00:09:19] Nós não podemos garantir os objetos relativos à saúde das mulheres sem ter as mulheres sentadas à mesa e nos dizer o que é preciso para realizar esse objetivo. E isso é nos dar autonomia corporal. Nós não podemos, de facto, garantir educação para todos se não soubermos quais é que são políticas que resultam. Portanto, a minha grande esperança é que estes próximos cinco anos sejam anos de uma grande aceleração baseada em dados, baseada em boas práticas. Porque, de facto, o mundo já percebeu que nós sabemos como salvar vidas. Nós sabemos como construir instituições sólidas e transparentes. Nós sabemos como diminuir as alterações climáticas. As gerações vindouras não vão perdoar se nós não agarrarmos esta oportunidade de fazer o que é preciso ser feito. 

ONU News: Há pouco tempo a gente recebeu o relatório falando sobre 8 bilhões de pessoas hoje no mundo. A população ainda está crescendo, mas tem uma disparidade de taxas de fecundidade. O que acontece? Por que a gente tem hoje essa diferença tão grande em certas partes do mundo?

Mónica Ferro: Há cerca de 200 anos, nós dizíamos que havia uma única taxa de fertilidade no mundo. Era alta. Não havia maneira de controlar a fertilidade, das pessoas e dos casais decidirem quantos filhos querem ter. Porque a questão fundamental é garantir que os casais e os indivíduos tenham o número de filhos que querem. Não há números mágicos. Uma das coisas que nós temos dito incessantemente é que não há taxas de fertilidade mais virtuosas ou melhores do que outras. Uma taxa de fertilidade boa é uma taxa de fertilidade que permite às pessoas realizar as suas aspirações. E o que nós encontramos por todo o mundo e sítios onde nos dizem que não tem um número de filhos que querem porque têm mais filhos do que querem, isso significa que não há poder de decisão e não há acesso à contracepção. E depois encontramos outros sítios onde as pessoas têm menos filhos do que querem. Por quê? Porque não têm a estrutura de base que precisam para poder realizar esse projeto. E aqui há muitas questões: a falta de creches, o trabalho precário, a instabilidade económica, os conflitos, tudo isto gera uma reação. Quer o não ter acesso, quer o não ter esperança, gera uma reação que faz com que as taxas de fertilidade sejam produto de uma série de fatores e não de um único caminho a sociedade. Ou seja, o que é importante. Os países têm de fazer essa análise e perguntar às pessoas se têm o número de filhos que querem e não quantos filhos têm. E eu tenho dito de uma forma incansável e os nossos relatórios têm dito também que quando nós nos focamos em números, o problema e a resposta tem a forma do corpo de uma mulher, ou seja, temos filhos a mais, vamos impedir as mulheres de ter filhos, temos filhos a menos, vamos forçar as mulheres a ter filhos. Portanto, tem que ser uma análise de direitos humanos. E estas várias taxas de fertilidade dependem, como bem dizia, da latitude, dependem dos objetivos políticos, dependem da estabilidade, dependem de um conjunto de fatores. E é isso que é importante que os Estados percebam que há um mix de direitos sexuais e reprodutivos, de saúde sexual e reprodutiva que cria um espaço para que cada pessoa possa realizar o seu projeto de fertilidade. Não há um número mágico, não há uma taxa mágica que se possa servir de padrão de ouro para todo o mundo. 

ONU News: Sobre os jovens e busca por oportunidades, de que forma específica é que este grupo pode encarar esta afirmação da sua realidade. Num mundo com muita migração, em sua experiência, o que pode ser feito?

Mónica Ferro: Nós temos visto que há uma grande ansiedade da parte dos jovens e eu diria que isso posso dizer é que a minha experiência, não de quando eu era jovem, também já fui jovem um dia, mas a verdade é que há uns anos nós sentíamos que os direitos iam chegando. Ou seja, a minha juventude foi passada a sentir que cada vez ia tendo mais direitos. Eu nasci dois anos antes do fim da ditadura em Portugal, portanto, todo o meu processo de crescimento foi de receber direitos, foi de ver de direitos reconhecidos, o direito ao voto, o direito de ir à escola, o direito ao divórcio, o direito de viajar sem precisar da autorização de uma do marido ou do pai. Todos estes direitos foram crescendo ao longo das últimas décadas. Mais recentemente, o que nós verificamos é que os jovens perceberam que não só não vão ter mais direitos a ser consagrados, como vão ter que lutar muito para manter os direitos que têm. As alterações climáticas são talvez a ameaça existencial que mais ansiedade provoca nos nossos jovens. A falta de emprego faz com que os jovens sintam que o investimento que estão a fazer na educação não é necessariamente o investimento produtivo que era há uns anos antes. Portanto, todos estes fatores de instabilidade. Todo o estigma quase negativo que certos fenómenos de migrações trazem para a ribalta, como se a migração não fosse uma coisa natural da espécie humana. A espécie humana sempre se movimentou pelo planeta e há muita gente que vive fora do sítio onde nasceu. Embora seja muito interessante se perguntássemos às pessoas qual é que era a taxa de migração global, aposto que teríamos um número muito superior ao que ela é e porque ela está abaixo dos 5%. Portanto, são menos de 5% das pessoas que vivem fora do sítio onde nasceram. Portanto, esta ideia de que há um fenómeno global de migração que põe em causa estruturas e economias resulta de uma narrativa para mim demasiado simplista, populista, podemos dizer que instila medo nas pessoas, mas que não é nada benéfico no sentido em que não cria um espaço para uma conversa que permita aos nossos jovens sentir que migrar é também uma forma de crescer. É uma forma de procurar outras oportunidades, mas também é um espaço vasto, sentirem que o mundo é todo seu. Portanto, eu vejo os nossos jovens com muita ansiedade nestas questões a verem os seus direitos também postos em causa se pensarem nos direitos das mulheres, nós assistimos muitos países a questionar soluções que nós sabíamos que resultavam a questionar o empoderamento das mulheres. Nós temos países que questionam a ideia de igualdade de género. Portanto, eu diria que os nossos jovens estão muito ansiosos e, de uma certa forma, têm razão para estar ansiosos, porque o mundo que nós estamos a mostrar e o futuro que lhes estamos a mostrar e um futuro cheio de desafios, talvez mais desafios do que aqueles que eu esperava que alguém em 2024 fosse encontrar.

ONU News: Na sua trajetória, como para você estar em lugares tão desafiadores, com um encolhimento do debate público especialmente em temas chave para o Unfpa?

Mónica Ferro: Eu acho que houve um encolhimento do espaço de debate público. Certezas que tínhamos baseadas na ciência são questionadas quando nós queremos falar de educação sexual compreensiva, identidade de género, direitos sexuais… Muitas vezes o espaço é mais reduzido, porque houve uma série de variações sobre estes temas que instilam o medo e percepções erradas nas pessoas. Como se quando nós dizemos que queremos mudar normas sociais, isso significa que nós queremos subverter culturas. Não, nós queremos de fato transformar sociedades, porque as normas sociais são construídas e podem ser desconstruídas, sobretudo aquelas que atentam contra a dignidade, contra a vida, contra o desenvolvimento de cada um de nós. Desse ponto de vista, eu tenho sentido que o ambiente, o ecossistema está mais complexo

Mas também não nos podemos esquecer que este ano, 2024, é um ano recorde dos processos eleitorais. Este ano vão decorrer cerca de 70% de processos eleitorais por todo o mundo. O que significa que mais de 4 mil milhões de pessoas vão poder votar. Em todos estes processos eleitorais há uma variação do nosso mandato a ser discutido. Ou seja, ou estamos a discutir a sustentabilidade da Segurança Social, ou estamos a discutir migrações, estamos a discutir projetos de fertilidade. Ou seja, todas estas questões têm a ver com a forma como nós gerimos a nossa população. E o nosso apelo é que, para que não haja este encolhimento do espaço público, para que não haja esta controvérsia desnecessária, porque não é inerente aos temas, temos estimulado que os países adotem não só o espaço de diálogo muito aberto, mas uma ideia de resiliência demográfica. Ou seja, os nossos temas dizem respeito à construção de sociedades que acolhem a diversidade demográfica e que planeiam as suas sociedades para acolher essa diversidade. E creio que se isto fosse mais compreendido globalmente, eu não teria tanta dificuldade em promover algumas ideias, em promover o debate em torno de algumas ideias. E quando digo eu, digo o Fundo das Nações Unidas para a População, porque essa é a nossa tarefa garantir um mundo com mais dignidade para todos. 

Fonte: ONU

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