Thursday, September 12, 2024
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Hospital, de Aldino Muianga

Por: Gilberto MatusseEm meados da década de 1980, Aldino Muianga, um dos mais proeminentes membros do grupo da Charrua, a revista que deu voz e visibilidade a uma geração de jovens escritores de então, muitos deles, hoje, escritores renomados, assinava os seus contos como Khambira Khambiray.A história do pseudónimo, contada pelo próprio autor, começa com a sua primeira colocação como prático, em 1978, no Hospital Provincial de Chimoio. Numa das suas viagens a um campo de refugiados e combatentes da luta de libertação do Zimbabwe, conheceu um paciente, um guerrilheiro, que sofria de uma infecção pulmonar grave. Tendo levado esse paciente do campo para o Hospital Provincial, acabou estabelecendo com ele uma relação de amizade muito particular. Numa certa ocasião, o paciente, que mostrava muita curiosidade pelos livros e apontamentos do seu médico, teria dito o seguinte: “Se eu soubesse ler e escrever, encheria livros com muitas histórias”. Em resposta, o médico prometeu: “Se eu escrever um livro, um dia, usarei o teu nome”. Khambira Khambiray era o nome de guerra do jovem guerrilheiro. E Aldino honrou a promessa, ao assinar com o nome do seu paciente o seu primeiro conto publicado, “A Vingança de Macandza”.Vem esta história a propósito da dupla condição de Aldino Muianga, a de “clinicador” e a de contador de histórias, a que ele próprio refere como as “carreiras médica e de escritor”. Nada mais ilustrativo desta condição do que este livro que agora sai: Hospital (Contar Clinicando).O livro é composto por 15 narrativas autónomas, em que o laço que as conecta é o hospital – a instituição, não um certo estabelecimento hospitalar – e os procedimentos clínicos que lá ocorrem. Diz-se aqui instituição porque, de facto, contam-se eventos que se deram em diferentes hospitais, em diferentes locais de dois países: Moçambique e Zimbabwe. Nas narrativas, relatam-se episódios “reais, vividos como o foram no quotidiano”, ora acontecidos com o próprio autor, ora acontecidos com outros clínicos. São experiências extremas – e, de outro modo, não seriam dignas de ser contadas –, que desafiam em grande medida os limites da nossa imaginação e levantam dúvidas sobre a sua factualidade. Não fosse a garantia acima expressa nas palavras do autor, o leitor comum julgá-las-ia ficcionais. Por essa via, diz ainda o autor, na sua nota introdutória, contá-las visa “franquear a porta de acesso ao universo mítico da profissão médica, aos desafios de cada momento, aos dilemas e dúvidas nas decisões, às frustrações, à angústia diante da impotência de corresponder às expectativas de salvar vidas e de mitigar o sofrimento dos enfermos.” Mas, na verdade, pela porta deste livro, acede-se a bem mais.É no espírito deste desígnio que desfilam narrativas como a que abre o livro, “Eutanásia”, título irónico para um relato em que a dedicação, a entrega, o zelo dos profissionais, acabam por se transformar numa “hipercorrecção”, resultando num incidente em que se escreve torto por linhas direitas. De resto, o livro povoa-se destes incidentes, em que alguma distracção, algum erro, algum procedimento menos adequado, alguma inexperiência, desagua num desfecho trágico. E, neste ponto, é preciso dizê-lo, Hospital (Contar Clinicando) não traz histórias com finais felizes. Estes, só em alucinação, como a da Elsa Venância, a jovem que “tinha apenas dezanove anos de idade, uma cabeça cheia de projectos e sonhos de ser uma distinta magistrada, esposa e mãe de muitos filhos”, que, à hora da morte, “via a imagem do seu pai a segurá-la pela mão, escoltá-la ao altar para ofertá-la em matrimónio ao noivo, o senhor Ricardo Quelhas”. Hospital (Contar Clinicando) pinta uma realidade cruel, trágica, com finais, no geral, marcados por mortes e amputações de membros e de sonhos.Se a realidade é cruel para os pacientes, não o é menos para os clínicos, frustrados e angustiados com a sua impotência ou enfrentando dilemas como o do Dr. Andrew Nomitenda, incapaz de decidir se extrai o objecto perfurante espetado no abdómen do paciente para controlar a hemorragia, arriscando, nesse processo, a laceração de órgãos vitais, ou se o deixa no local, usando o seu efeito de tamponamento. É idêntico o drama do Dr. Lukas Tishome, que tem que operar uma parturiente que dá o seu consentimento para a cirurgia, mas não para que o clínico retire o colar de missangas que traz debaixo do umbigo, procedimento sem o qual a cirurgia não poderá ser feita.Aos incidentes causados por erros nos procedimentos ou os dramas de quem tem que tomar decisões, somam-se intromissões de profissionais de outros campos (quando tanto!). Hospital (Contar Clinicando) recorda-nos também episódios, que não são inéditos, de impostores, como o do Dr. Sharif Khan, o cirurgião do Hospital Distrital de Karói, ou de Altos-Comissários que se vão encarregando de lembrar que “todos os porcos são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”.Ao franquear as portas de acesso ao mundo mítico da profissão médica, com os seus desafios, dramas e dilemas, este Contar Clinicando de Aldino Muianga faz-se também o lugar aonde desembocam outros dramas, os que circulam pelos becos e labirintos de uma sociedade de homens e mulheres que, entre encontros e desencontros, se buscam a si próprios e buscam também a recomposição dos sonhos que a adversidade desmanchou.Aos corredores do hospital, ao gabinete do clínico ou à sala de operações, efectivamente, o que chega é o drama pessoal da menina que “vivia dias e noites de pesadelos”, apesar da “sua formosura [que] entontencia os magalas e remetia-os a disputas de favores e atenções”, atormentada pela impossibilidade de uma convivência normal por causa dos quelóides que lhe deformam os lóbulos das orelhas. É também “à busca do milagre que restituiria a tranquilidade à família e traria novas perspectivas à vida do filho” que os pais do menino Porfírio, que, por causa das pernas varas, tinha frequentes episódios de depressão, era vítima de abusos dos colegas, que o alcunhavam de “Gorila”, incapaz de uma sã interacção com os menino seus pares na escola e na rua, decidem viajar da cidade da Beira até ao Hospital Provincial de Chinoyi, no Zimbabwe, após tomarem conhecimento das habilidades do ortopedista Dr. Nicolay “o Vitorioso”.A infertilidade, tema amiúde retratado na literatura (e não só) moçambicana, muitas vezes com a factura a fazer recair o seu peso sobre a mulher, tem também a sua desembocadura neste Hospital. É o que acontece com Ana Brígida, cujo caso chegará ao hospital na sequência das voltas e reviravoltas que dá, depois de um dia ela ter saído acabrunhada e frustrada no cortejo que a devolve à casa dos pais para ser tratada contra a sua incapacidade de gerar filhos, dois anos depois da sua recepção com “ululações festivas” ao lar conjugal.Numa prosa fluida, a um tempo apimentada e açucarada, rebuscando uma raridade vocabular, um sugestivo adjectivo, uma ironia a convocar o cómico – não o da gargalhada a bandeiras despregadas, mas o que chama um ligeiro sorriso –, Aldino Muianga traz-nos a vasta temática da falsidade nas relações pessoais e sociais. “Um caso de vaginismo” chega ao hospital, atraindo os estarrecidos olhares dos mirones. Aliás, já o vinha fazendo, desde o cubículo alugado no Zimpeto, onde o Pastor Gumende, “estimado e admirado [na sua congregação] pelas suas alocuções no púlpito, onde mobiliza os crentes para o alinhamento e persistência nos cultos e práticas da Fé cristã”, pratica as suas sessões de meditação transcendental, bem como ao longo de todo o itinerário da improvisada ambulância de caixa aberta em direcção aos Serviços de Urgência. Com este caso chega a temática da hipocrisia e da falsidade. Chegam também a traição e o adultério, “confessados” pela imprudência de um delírio pós-operatório, induzido, talvez, por algum anestésico; “denunciados” por um insólito caso de gémeos que nascem como uma disparidade de raças, sendo um negro e o outro “com marcados sinais de mestiçagem”. Na mesma esteira, um intricado caso de multifacetadas e cruzadas traições, chegará, em “Priapismo”, à Clínica Privada de Mutare, com o senhor Milton Gwanyanya, “um bon vivant que se não coibia em exibir as posses e o prestígio que detinha”.Maputo, 5 de Julho de 2024

Fonte:O País

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