Crónica de um vagabundo inconsequente

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Escrito por Alexandre Chaúque

“Não é por muito madrugares que o sol vai nascer mais depressa” – Provérbio

Mas hoje estou acordado desde antes dos pássaros, que tomam diariamente o meu enorme quintal – vedado de plantas (“espinhosa”) – por campo da liberdade. Vêm em bandos nas diferentes espécies, cantando cada grupo a sua melodia, com excepção das rolas que levitam duas a duas, desconfiadas. E poisam na copa das minhas árvores (mangueiras e laranjeiras e limoeiros) e desabrocham a alegria de ser pássaro, sem medo de mim, que jamais os espantei. É por isso que não receiam em descer ao chão, quando precisam, e os rabos-de-junco vão tomar banho de areia, enquanto estou aqui perto, na varanda, sozinho, contemplando a natureza. Imaginando-me pássaro também.

São cinco da manhã e já estou na paragem à espera do “Chapa” que me levará à cidade. Aliás, a uma urbe em deliberada descaracterização como consequência da destruição dos antigos edifícios da nossa história. Então, sendo assim, nós também estamos em derrocada por dentro, ou seja, a nossa memória vai ficar sem as lembranças do passado. Caminharemos como os portadores de alzheimer, que não se recordam de nada, como se na vida deles nunca tivesse acontecido nada, como se não tivessem antecedentes.

E eu vou à Maxixe onde me espera um amigo de muitas lutas e batalhas, as quais nunca vencemos. O que nos vale é que não vamos desistir de combater, e também jamais deixamos de nos perguntar assim: vencemos ou fomos vencidos? E essa interrogação catapulta-nos.  Faz-nos sentir que apesar de não termos conseguido nenhuma vitória neste percurso inconsequente, também não fomos vencidos, e é isso que nos importa: não sermos vencidos!

Entrei numa dessas barcaças com motor fora-de-bordo e aqui dentro cheira a gasolina, porém em recompensa tenho uma vasta paisagem para desfrutar, desde Nhapossa, passando por Mucucune e Guilalene. E na outra margem, onde se destaca a cidade da Maxixe, exulta a exuberância do palmar que vai reconfortar-me o espírito, e esqueço-me do cheiro do petróleo que move um barquinho frágil, dentro do qual vão vidas humanas. Para além de que nesta maré cheia, não há ondas, o tempo é dos anjos.

Olho para o relógio. São 7.30. E a Maxixe, que agora acolhe-me no seu seio, depois de desembarcar, é realmente um entreposto do diabo. Aqui cruzam-se pessoas de inúmeras e desconhecidas proveniências. Umas de passagem meteórica, outras chegam para ficar alguma temporada, e outras ainda acabam ancorando para sempre, seduzidas pelo fluxo do dinheiro.

É assim, Maxixe, berço temporário de camiões de longo curso movimentando a economia. É aqui onde estou, neste momento, contrariado por respirar num lugar sem sossego, sem blues para escutar. É deste modo que me sinto um estranho, eu não sou daqui. O meu paraíso é a cidade de Inhambane, onde não se passa. É aqui onde estão armazenadas as minhas botijas de oxigénio.

Vi o meu amigo sentado na esplanada da Pousada da Maxixe bebendo cerveja, à minha espera. Ele também viu-me e reconheceu-me, depois de anos sem fim. Aproximei-me devagar contendo a emoção. Até porque a idade ensinou-me a encarar as situações com serenidade, sejam de que índole forem. O meu amigo também não entrou em euforia, então o nosso sangue ganhou a mesma fervura branda nos subúrbios onde vagueávamos sem destino.

Ele levantou-se. Abraçamo-nos profundamente. E a conversa será desfiada na rampa do passado. Do nosso passado. E das pessoas que conhecemos. E dos lugares que nos acolhiam. Então, o amanhã não nos importa: se os pássaros não se preocupam com o que vão comer amanhã, porquê que nós, que somos superiores a todos os pássaros, vamos nos preocupar!

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