‘Selvagem e sentimental’, por Vasco Mendonça
Acontece uma vez por outra ter de relembrar aos meus filhos que vivem num regime autocrático. Não utilizo palavras pomposas para explicar os fundamentos deste sistema. A primeira estratégia passa sempre pela pedagogia, mas, não raramente, a coisa acaba num «sim, mas a mãe e o pai é que mandam, por isso fazes o que nós estamos a dizer». O protesto acabará por perder força e a manifestação desmobilizará até à hora da refeição. Em breve as crianças voltarão a mostrar que são a melhor coisa do mundo. Até lá chegarmos, dá sempre algum trabalho. E, ainda que não seja em 2024 que receberei da Academia o sempre desejado prémio de Pai do Ano, é justamente esse troféu que os meus filhos me vão oferecer nesta manhã de Dia do Pai. Tal como em outros regimes autocráticos, o elogio da liderança política será premiado, neste caso com um jantar à escolha das crianças.
Não me lembro de alguma vez ter comparado a liberdade de duas crianças a viverem debaixo do meu teto com o modo de organização da maior instituição do país, mas há uma primeira vez para tudo. Escrevo isto porque há alguns dias continuo a tentar compreender o que passou pela cabeça do jovem Kokçu. Não sei se foi o empresário que o convenceu a dar esta entrevista, ou se o próprio jogador achou que seria uma boa ideia, mas a série de equívocos encontrados nas respostas teve o condão de me irritar.
Bem sei que recentemente vimos um avançado do Benfica fazer um pirete a meia dúzia de adeptos na garagem do estádio, e também me recordo de um Grimaldo em despique com os adeptos, mas há um requinte adicional nesta entrevista de Kokçu. O turco terá aparentemente ignorado que é só mais um jogador do plantel e fez ouvir a sua voz como se alguém lhe tivesse pedido a opinião. É uma conversa notável em que ficamos a saber várias coisas.
Em primeiro lugar, Kokçu esperava ter sido apresentado aos adeptos de outra forma, presumo que naquela varanda por cima da porta 18, perante uma multidão de adeptos imaginários que ali acorreriam para ver a apresentação de um tipo do Feyenoord que deixa lá ver se joga alguma coisa. Em segundo lugar, Kokçu está magoado porque sente que o Benfica e o treinador não lhe deram importância, apesar de o jogador ser frequentemente titular e ter frustrado as expectativas até agora. Aparentemente, segundo o próprio jogador, estamos a uma pequena correção tática de descobrir um predestinado. É aliás Kokçu quem recorda que foi eleito o jogador do ano na Holanda, um prémio que o turco só não receberá novamente esta época porque está a jogar em Portugal, onde ninguém quer saber dos prémios que ele ganhou. A entrevista termina com Kokçu a explicar que ainda vai conquistar a confiança dos adeptos, bastando para isso que o coloquem a jogar na posição certa. No fundo, está mais ou menos tudo mal excepto Kokçu.
Estamos em março de 2024 e o Benfica disputa três provas a nível nacional e internacional. É uma boa altura da época para relembrar a estes atletas qual é o regime em vigor no clube. Brincadeiras à parte, direi que não é exatamente uma autocracia, mas também não é seguramente uma hierarquia horizontal em que todos têm direito a partilhar a sua opinião nos jornais. Como se tudo isto não bastasse, Kokçu apareceu agora nas suas redes sociais a esclarecer o tema. Comecei a ler julgando que vinha aí um pedido de desculpas, mas enganei-me. Kokçu achou por bem esclarecer que é importante sermos críticos uns dos outros e que, passo a citar, discutiu a sua visão com o clube nos meses recentes. É extraordinário que, passados alguns dias sobre a entrevista, o atleta ainda se sinta na liberdade de ensaiar teorias sobre a importância do pensamento crítico e da visão que absolutamente ninguém lhe pediu para partilhar.
Há uma corrente nos últimos dias que reconhece a validade das observações de Kokçu, um pouco como se faz quando o segredo de justiça foi violado e não nos resta outra opção senão avaliarmos as escutas, vestindo a beca de juiz sentados no café ou nas redes sociais. Eu até admito que exista validade nas opiniões, mas acontece que eu e, suspeito, muitos outros adeptos, não estamos interessados na opinião do Kokçu neste momento. A função dele neste momento não é emitir opiniões. Pode jogar a 6, a 8, ou a 10. Por mim até pode ir à baliza antes de voltar a explicar o que pensa sobre a sua situação particular. Que jogue onde for necessário para o Benfica conquistar os troféus que está a disputar. Até esse dia chegar, Kokçu deve ajudar a equipa, o treinador e todos os colegas a atingir os objetivos do clube, que, já agora, também deveriam ser os dele. É preocupante que um atleta profissional, num grupo como o do Benfica, que joga por milhões de adeptos e por muitos milhões de euros, coloque o seu interesse acima dos objetivos da equipa. É preocupante pelo que revela acerca do jogador, mas também pelo que nos diz acerca de um certo excesso de liberdade que parece imperar no grupo de trabalho. Neste Dia do Pai, apetece-me pedir ao presidente Rui Costa que lembre ao atleta quem manda nisto afinal de contas.
Resta-me esperar que a multa seja bem pesada e que Kokçu volte a fazer a única coisa que é esperada dele. Não é pouco: jogar à bola, função para a qual foi contratado antes de começar a emitir opiniões como se pretendesse o lugar de Domingos Soares de Oliveira. Venha daí esse imenso futebol que diz ter na ponta dos pés, mas sem desculpas. Se aparecer, não terei problema nenhum em dizer ao mundo inteiro que Orkun Kokçu, esse mago turco, calado é um poeta.
Fonte: A Bola