O técnico inspirador de há 20 anos perdeu-se no tempo; o cariz defensivo das suas equipas acentuou-se; português não conseguiu encurtar distância da Roma para os gigantes italianos
A história é bem conhecida por todos. José Mourinho é tradutor de Bobby Robson e adjunto de Louis van Gaal, antes de ser aposta de Vale e Azevedo para treinador principal do Benfica. Faz um ultimato ao sucessor Manuel Vilarinho, que prefere o já alinhavado para a época seguinte Toni, e vê de seguida a ida para o Sporting abortada devido à pressão de adeptos, notáveis e não só, que não pretendem alguém que treinou antes o rival sentado no banco da sua equipa.
Faz um estágio em Leiria e Pinto da Costa não precisa de ver muito para tomar a decisão. O show na Mealhada, um jantar filmado pela janela pelas televisões, é apenas a oficialização de algo mais do que acordado. No FC Porto, tem as condições para aplicar, com apoio de Rui Faria, a periodização tática tornada doutrina por Vítor Frade, que defende que todos os exercícios, feitos sempre com a presença da bola, passem a mimetizar o que acontece durante o jogo. Como bónus, também a técnica dos jogadores agradece. A revolução traz os primeiros títulos: dois campeonatos nacionais, uma Taça, mas sobretudo a Taça UEFA e a Liga dos Campeões.
Depois, leva o Chelsea ao título inglês 50 anos depois e repete a façanha, no ano seguinte, para provar que não se tratara de um acidente. À terceira época, tudo corre mal, fazendo lembrar uma primeira vez a sentença de Béla Guttmann, que atira que o terceiro ano é sempre fatal para os treinadores. Ainda resiste até setembro da quarta temporada, mas três maus resultados seguidos (derrota com o Aston Villa em Birmingham, empate com Blackburn e Rosenborg, este na Champions) precipitam o adeus.
No Inter, herda uma equipa campeã sob a liderança de Roberto Mancini e ganha tudo, inclusive a Champions, 45 anos depois de Helenio Herrera ter levantado a segunda Taça dos Clubes Campeões Europeus para os nerazzurri. Simbolicamente, a final com o Bayern, de Van Gaal, realiza-se no Santiago Bernabéu, a sua futura casa. É fotografado a chorar com Materazzi, central dos italianos, poucas horas depois da final.
Ao segundo ano em Madrid, consegue o antídoto para aquela que muitos consideram a melhor equipa da história, o Barcelona de Guardiola. Sai no final da terceira época, sem uma final de Champions, com uma equipa desgastada e dividida, e a pressão exterior a acentuar-se sobretudo desde a agressão infame a Tito Vilanova, o adjunto de Pep.
Volta a Inglaterra e ao Chelsea e, na segunda temporada, festeja mais um título. A terceira é que volta a ser um desastre, embora o seja para quase todos menos para o Leicester do loveable loser Claudio Ranieri.
Inicia a época seguinte em Manchester, depois de tanto tempo a ser dado como o sucessor adiado de Alex Ferguson, e ganha a Liga Europa e a Taça da Liga, apesar do sexto lugar no campeonato. O segundo posto na temporada 2017/18 dá sinais que não se repetem na terceira. Volta a não conseguir o melhor relacionamento com os jogadores, entre os quais a diva Pogba, e não resiste.
Está às portas do Real Madrid outra vez, mas aceita o Tottenham, um clube que parece o ideal para reinventar-se, embora um degrau abaixo do que se habituara. Muda de equipa técnica, tem nas mãos um emblema não obrigado a ser campeão, mas fica em branco pela primeira vez na carreira. Deixa Londres e terá deixado também fechadas durante algum tempo as portas da Premier League.
Com a mentalidade defensiva que se acentuava nas suas equipas, o caminho de Mourinho parece óbvio: o regresso ao calcio. Não existe só aí um maior enquadramento para as ideias que defende, como também um respeito acentuado pela estratégia e pelos estrategas, graças às raízes profundas do catenaccio e da sua versão mais light, il gioco all’italiana, que irrompem sazonalmente.
A boa imagem deixada no Inter, que leva à conquista da Liga dos Campeões, tornam-no também num alvo apetecível. A Roma, com o português Tiago Pinto como diretor desportivo, consegue resgatá-lo. Leva os giallorossi ao primeiro título europeu, a Liga Conferência, em 2021/22, mas soma dois sextos lugares e fica fora da Liga dos Campeões e longe do registo de técnicos como Claudio Ranieri, Luciano Spaletti, Rudi Garcia e até Eusebio di Francesco. Despede-se do Olímpico no 9.º posto, já eliminado da Taça, apesar da relação apaixonada que mantém com os adeptos.
No Dragão, há 22 anos, José Mourinho está longe de ter a tatuagem de técnico defensivo que parece já não conseguir lavar da pele. O 4x3x3 é o plano A e o 4x4x2 losango um sistema para ocasiões especiais, como clássicos ou jogos europeus. A eletrizante final de Sevilha com o Celtic (3-2) é ganha em losango, com Deco no vértice mais adiantado, à frente de Maniche, Costinha e Alenitchev e atrás de Derlei e Capucho, agora por terrenos bem mais interiores. Henrik Larsson ainda segura os escoceses duas vezes ao jogo, mas um bis do ex-UD Leiria e um golo do médio ofensivo russo valem a consagração aos portistas e ao treinador português.
Um ano depois, em Gelsenkirchen, Alenitchev começa no banco para fechar o resultado em 3-0 diante do Mónaco de Didier Deschamps, entrando de início, para o seu lugar, Pedro Mendes. À frente, é Carlos Alberto quem substitui Capucho, agora ao serviço do Rangers, com o brasileiro a assinar o primeiro golo. Deco fez o segundo.
Mourinho anuncia-se como Special aos ingleses, que são surpreendidos por uma equipa hábil em transições. O Chelsea é perito em saber o que fazer com a bola quando a recupera (no preciso momento em que o adversário está mais fragilizado) e como proceder também quando a perde, juntando a isto um estudo pormenorizado da oposição, algo em que os treinadores britânicos pouco investiam.
O sistema continua a ser o 4x3x3, com o 4x4x2-losango como recurso para a Europa, mas começa a ganhar uma dimensão mais física, com nomes como Claude Makélélé e, progressivamente, Michael Essien a começarem a desbravar caminho para o 4x2x3x1 que acompanhará o técnico português em etapas mais adiantadas da carreira.
No Inter, a dupla argentina Javier Zanetti – o capitão joga como lateral-direito, esquerdo e médio-centro durante a temporada, libertando espaço para a locomotiva brasileira Maicon – e Esteban Cambiasso garante elevada capacidade de recuperação da bola, com o holandês Wesley Sneijder a dedicar-se a tarefas ofensivas. Thiago Motta também é muitas vezes utilizado como médio-defensivo, reforçando a ideia de duplo-pivot, uma vez que se inverte o triângulo do meio-campo.
No entanto, a grande mudança é a perda dos extremos: se em Londres, Duff e Robben (embora repartindo com Joe Cole) são usados com frequência e pelo menos um deles tem lugar garantido no onze, em Milão Eto’o, Milito e Pandev atacam sobretudo terrenos interiores. O losango permanece como recurso.
É em Madrid que o duplo-pivot é definitivamente assumido, com a vigência do 4x2x3x1. Na época do título, a de 2011/12, o quarterback Xabi Alonso e o 8 de longo alcance Sami Khedira dão suporte a uma equipa bastante ofensiva, com Benzema à direita, Özil na posição 10 e Cristiano Ronaldo à esquerda, todos atrás de Gonzalo Pipita Higuaín. Kaká, fisicamente uma sombra do jogador que já tinha sido, vai jogando a espaços.
Se diante do Barcelona, Mourinho assume o bloco baixo e o contra-ataque como arma preferencial – o tal autocarro estacionado à frente da baliza –, o Real Madrid é, nos restantes encontros, uma máquina ofensiva. Os merengues chegam aos 100 pontos, mais nove do que o super-Barcelona, e marcam 121 golos só na liga. Na Liga dos Campeões, não consegue, no entanto, mais do que três meias-finais, perdidas sucessivamente para Barcelona, Bayern e Borussia Dortmund.
No regresso a Stamford Bridge, mantém-se o 4x2x3x1 no onze-tipo, com Fàbregas e Matic no eixo e quatro homens para o ataque, distribuindo-se da direita para a esquerda da seguinte forma, atrás de Drogba ou Diego Costa: Willian, Oscar e Hazard. Líder desde a primeira à última jornada de 2014/15, o futebol é menos efusivo que dez anos antes, mais pragmático e objetivo, mas tremendamente eficaz.
Em Old Trafford, surge o Mourinho experimentalista, muito por força das dificuldades sentidas na estabilização da equipa e dos resultados. O 4x2x3x1 está muito presente e até é assente neste esquema que arrebata a Liga Europa ao Ajax logo na primeira temporada, mas o português permite-se derivar para o 4x5x1, o 3x4x3 ou o 3x5x1 em alguns momentos.
O seu futebol é acusado de ser demasiado lento e previsível, o que não é alheio a que mesmo na final de Estocolmo atribua a posição 10 a Fellaini, um mal-amado das bancadas e, sobretudo, um médio de trabalho mais do que criativo, aí colocado para pressionar a construção holandesa.
Mkhitaryan, Martial e o ex-proscrito dos tempos do Chelsea Juan Mata não chegam para dar aos red devils a criatividade necessária e também a defesa reforçada com Lindelof e Bailly mostra-se demasiado instável. Mourinho falha na devolução dos títulos de campeão ao Manchester United numa era em que a Premier League é definitivamente o centro do futebol do Velho Continente, tanto em jogadores como em treinadores, com destaque para Pep Guardiola e Jurgen Klopp.
O 4x2x3x1 mantém-se como sistema base para a estadia no Tottenham, mas Mourinho continua a fazer incursões a esquemas diferentes, como o 3x4x3 e o 3x5x2. É aliás com este último desenho e com Ndombélé na posição 10 que orienta o último encontro pelos spurs diante do Everton (2-2).
Também em Londres, as críticas persistem: falta de criatividade e de soluções ofensivas, preferência por jogadores defensivos e de cariz mais físico do que técnico, e incapacidade de reaproximar o clube dos lugares de topo. Com talvez a melhor dupla de avançados da Premier em Harry Kane e Son, e com criativos como Lo Celso e Lamela (e até Bale) apenas utilizados a espaços, não se pode dizer que o técnico não tinha matéria-prima para fazer melhor do que o sétimo lugar em que deixa os londrinos.
O carisma de Mourinho tem de imediato impacto nas bancadas. Os adeptos adoram-no e, de tempos a tempos, parece recuperar parte da ligação mais direta e especial que criava com os jogadores e que fazia com que acreditassem que eram os melhores do mundo.
É verdade que é por si que chegam ao Olímpico nomes como Paulo Dybala, Romelu Lukaku, Renato Sanches, Georginio Wijnaldum, Aouar, entre outros, e contabiliza vários períodos arrasadores no que a lesões diz respeito, porém o jogo jogado nunca é entusiasmante. Se tal é algo que nunca foi muito relevante em Itália, agora também o pragmatismo fica curto para a conquista de troféus. Resta-lhe apenas a Liga Conferência e, mais uma final, da Liga Europa, perdida para o Sevilha nos penáltis.
Mourinho adota de vez o sistema de três centrais num 3x5x2 que, no meio-campo conta com três médios-centro de contenção, e entrega as despesas ofensivas aos alas e aos dois da frente. Dybala, quando está disponível, é o único poço criativo do conjunto, mas tem de ser gerido com pinças, e a Roma fica aquém das expetativas a todos os níveis. Ou pelo menos, das expetativas que certamente os donos teriam, de que, por ter um dos melhores técnicos da história, pudesse encurtar distâncias para os gigantes de Milão, para a Juventus e até para o Nápoles, um novo player candidato ao scudetto. Tal nunca parece possível.
O atual Mourinho está cada vez mais distante do inspirador de há 20 anos. Nos resultados, porém também nas ideias. Foi um revolucionário que se deixou contagiar pelo lado defensivo do jogo. Hoje, é muitas vezes um simples condutor de autocarro. Mourinho parked the bus. Não foram poucas as vezes que o escreveram.
Será sempre um dos maiores do jogo, todavia os últimos anos têm sido de declínio. Poucas pessoas imaginariam que, depois de tanto sucesso e do seu lugar já guardado nos livros de História, um dia treinaria uma Roma e, hoje, foi despedido dessa mesma Roma. As portas começam a fechar-se. Há quem diga agora que o seu futuro já não passa por um clube, mas sim por uma seleção.
Ele que foi um mestre na gestão mental, está a falhar precisamente por aí. Pela mentalidade. Mourinho é muito maior daquilo que tem sido.
Fonte: A Bola