OPINIÃO A profecia de Bocage sobre o Vitória de Setúbal

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Se fosse místico, haveria de jurar que Bocage previu a queda do Vitória de Setúbal no soneto ‘Meu ser evaporei em lida insana’

Lembrei-me logo do Fernando Tomé quando li a notícia de que o Vitória Futebol Clube, de Setúbal, não vai participar na Liga 3, escalão ao qual foi promovido desportivamente, por impossibilidade de cumprir os requisitos, financeiros e outros, inerentes à competição. Há quatro anos, o Fernando Tomé ligou-me em choro convulsivo pela despromoção do Vitória da primeira divisão para o Campeonato de Portugal por falhar no cumprimento dos requisitos na inscrição da equipa na Liga.

O Fernando Tomé é o fiel depositário da história e da alma vitoriana, com a sapiência de um arquivista, colecionador de histórias e memórias. Ele que fez parte da melhor geração de futebolistas do Vitória (pelo meio, seis épocas a jogar no Sporting), com Jacinto João (JJ) à cabeça, não elencando mais ninguém para não cometer o pecado de ficar alguém de fora. Um clube com 77 presenças na primeira divisão, três taças de Portugal ganhas, uma Taça da Liga ou até uma Mini Copa do Mundo de 1970, na Venezuela, frente a Santos, Chelsea e Werder Bremen.

O Fernando Tomé é das melhores pessoas que conheci na vida. E ajudou-me muito profissionalmente, foram muitas dezenas de grandes histórias que contei no jornal A BOLA graças à memória prodigiosa ou arquivo imenso que foi juntando. E ainda hoje, o Tomé é um embaixador do Vitória, um poço de histórias que partilha nas redes sociais.

Foi a partir de 1995 que comecei a ir a Setúbal como jornalista de A BOLA. Foram anos a chegar ao Bonfim e ser carinhosamente recebido pela dona Ester, onde bebia um café e comia um bolo enquanto ouvia as histórias do marido, o senhor Machado, que se empolgava quando contava como ele e muitos outros carregavam baldes de cimento ou tijolos para a construção do Estádio do Bonfim. Ir a Setúbal era também juntar o útil ao agradável, fazer o meu trabalho para A BOLA e render-me aos recantos da cidade e, acima de tudo, ao choco frito, ao carapau manteiga ou o buffet de peixe grelhado. E aprendi, aos poucos, a gostar muito do Vitória, clube de pescadores, de trabalhadores braçais, de gente para quem o Vitória sempre foi o orgulho maior da cidade. Como dizem os vitorianos, com sotaque carregado, «o Vitórria não é grrande, é enorrrme».

Não cabe neste texto elencar as razões para a queda do Vitória. Resultado de tiros nos pés de diversos presidentes, de um estado de quase guerra civil que boicotou direções, como a de Fernando Oliveira, o último presidente a garantir estabilidade e permanências consecutivas na Liga. Hoje fico pela revolta que sinto por ver assim este agora também meu Vitória.

Setúbal é também conhecido por um dos maiores vultos da literatura lusófona: o poeta Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805). Inconformado, apetece-me declamar o Soneto do Membro Monstruoso. Mas contenho-me. Aliás, se fosse místico, poderia até jurar que o soneto Meu Ser Evaporei na Lida Insanada era uma provisão da queda do Vitória:

Meu ser evaporei na luda insana 

Do tropel de paixões, que me arrastava. 

Ah! Cego eu cria, ah! mísero eu sonhava 

Em mim quase imortal a essência humana. 

 

De que inúmeros sóis a mente ufana 

Existência falaz me não dourava! 

Mas eis sucumbe a Natureza escrava 

Ao mal, que a vida em sua origem dana. 

 

Prazeres, sócios meus e meus tiranos! 

Esta alma, que sedenta em si não coube, 

No abismo vos sumiu dos desenganos. 

 

Deus, oh Deus!… Quando a morte a luz me roube, 

Ganhe num momento o que perderam anos, 

Saiba morrer o que viver não soube. 

Tenho saudades do Vitória, que marcou a minha carreira e a minha vida. Não nasci vitoriano, aprendei a amar o Vitória. E sonho com o dia em que todos os vitorianos, e todas as forças vivas da  região de Setúbal recriem o grito dado em 1910 por Joaquim Venâncio, Henrique Santos e Manuel Gregório: «A vitória será nossa». 

Fonte: A Bola

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