Tuesday, September 17, 2024
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“Zero sobre Zero: O Espião que veio de Kigali”, de Aurélio Furdela

Por: Cristiano MatsinheA literatura policial, a excepcionalmente bem lavrada, carateriza-se por ser altamente cativante e visceralmente inebriante. O leitor que se embrenhe na leitura de romances policiais, dificilmente sai incólume e raramente consegue evitar travestir-se nas roupas de alguns dos personagens, reivindicando, para ele mesmo, o compromisso de desvendar o mistério que o autor teria maquinado.Talvez daí a velocidade e voracidade com que se devora tais obras. Certamente que os aficionados irão rever-se nesta asserção. Nesse primordial aspecto da nossa relação com o romance policial, Aurélio Furdela não defraudou. Devorei a obra em sem tempo e depoimentos há, de outros leitores que também percorreram as páginas desta obra num ápice.Inicialmente subalternizado nos cânones literários dogmáticos, o Romance Policial, de género literário detectivesco afirmou-se, não sem contestações, como uma estrutura literária per si, pela consistência dos códigos e parâmetros usados pelos seus mais emblemáticos autores, alguns dos quais peritos em transfigurar-se em narradores ou disfarçados personagens das obras que apresentam.Polémico, desde a sua gênese, o estilo literário policialesco, lato senso, remota dos primórdios das narrativas bíblicas, para os atavistas, é claro, com a trágica cena do assassinato de Abel! Mas quem matou Abel? Veredicto: Caim! Espantoso como um singular evento bíblico encerra os principais ingredientes que norteiam o que se pretenda uma boa trama de um romance policial, pois, em tão lendário crime temos: O enigma, o perpetrador, a vítima, as pistas evidencias e circunstâncias que o tal crime teria ocorrido, além dos que se encarregaram de narrar a tão messiânica tragédia, atribuindo-se-lhes o papel de detetive ou narrador.Penso que já vos atormentei demais com os relatos da fatídica relação de Abel e Caim, o que deve também bastar para dissuadir os que querem apenas ater-se à génese e historiografia do culto ao “cult” policial. Pois, não sendo esse o propósito deste encontro, o que aludo sobre Abel e Caim é mais do que suficiente para estimular a imaginação, aguçar o senso inquisitivo e a postura que todos os leitores deveriam assumir ao pensar ou deparar-se com um imbróglio detectivesco ou policialesco.Ainda assim, aludir aos primórdios bíblicos para encorpar a penumbra do mito fundador do género policialesco não me exime de fazer justiça ao enigmático Edgar Alan Poe, cuja obra credita-se, à rigor, o mérito de precursor da linha literária que hoje nos une neste evento e, cuja vida, rica em dramas e enredos, parece personificar o significado da literatura em causa.Nessa lavra, o Prefácio de Zero sobre Zero, elegantemente escrito pelo meu irmão Gabriel Muthisse, faz-nos um favor, ao apresentar um cândido retrato do seu pessoal encontro com este género literário além revisitar e honrar o mais estabelecido roteiro das vénias e reverencias a que o estilo policialesco presta aos seus mitos fundadores e aos seus mais icónicos interpretes. Muito obrigado, Grabriel Muthisse!Feitas as salvaguardas introdutórias sobre o género detectivesco e policialesco, atenho-me, doravante, a esmiuçar Zero sobre Zero, em Sete Actos:Acto 1. Do EnigmaZero sobre Zero não é um romance policial de história ou evento único. Mas uma cativante obra articulada em torno de múltiplas tramas e histórias paralelas que cumprem a função de apimentar e complexificar o exercício mental do detetive e dos leitores no interesse de desvendar a trama principal.Nesta obra, os enigmas e as tramas são contundentemente apresentados, logo nas páginas iniciais, de forma abrupta e penetrante, com recurso a um inusitado ponto de entrada, como uma janela do alto de um prédio, através da qual vislumbra um aglomerado de pessoas, em torno de um corpo estendido no chão, seguido pelas diligencias investigativas da entidade de dever que quase entra em linha de colisão com os heróis da obra.Com a mesma perspicácia com que o Narrador introduz-nos ao crime, incendeia a imaginação do leitor, ao apresentar o misterioso caso do Trigésimo Primeiro passageiro, a incógnita que empresta título a obra, ao mesmo tempo em que arrebata-nos, como leitores, a sermos cúmplices na responsabilidade de guardar segredo, até que se reúna inteligência suficiente para reportar, às estruturas superiores e mediáticas, com factos e evidências.E é justamente essa busca de factos e evidências parte do mote da obra, como bem exigem os cânones deste gênero literário, cujo foco é e deve ser o esfolhear do processo de elucidação dos mistérios, uma empreitada a cargo do Detetive Lioste e sua entourage, ou Morrito (AKA Kufeni) e sua claque. Um momento! Quando presume-se que já se sabe dos principais enigmas da obra, eis que Furdela despeja-nos uma Furgoneta (faz tempo que não ouvia essa palavra) repleta de gente esquálida, esquelética além de meia dúzia de cadáveres nauseabundos, a tipificar a realidade do tráfico humano, um condimento adicional no rol de enigmas que Furdela se dispôs a desvendar.Acto 2. Dos perpetradoresNesta trama carregada de uma plausível caracterização da tensão que se instaura quando se alude às relações transfronteiriças, dilemas intrínsecos ao tráfico humano e bandidagem encoberta nos negócios materiais e imateriais, incluindo da fé, que pululam no amalgama do fenómeno da imigração e mobilidade regional e continental, o autor enquadrou com notável astúcia, os perfis dos heróis e anti-heróis, mocinhos e bandidos que não devem faltar num bom romance policial meio místico e meio noir!A coroar um buffet recheado de múltiplas linhas investigação e suspeitos bem propostos, Furdela não perde de vista as “regras do método” do romance policial que abraçou, respondendo, com artesanal mestria, a crítica questão Whodunnit (Who Done It), “Quem Fez Isso”, revelando, nas páginas derradeiras, a(s) identidade(s) do(s) criminoso(s) que dão razão de ser ao trabalho do detetive e do próprio autor, enquanto narrador.Estrategicamente, eu até diria com alguma dose de malícia, quase sadismo, o autor caracteriza magistralmente bem o misterioso agente Zero-sobre-Zero, também conhecido como o “branco das cavernas”, mas sonega-nos a possibilidade de conhecer da sua sorte, o que nos faz pensar que este “perpetrador” ainda vai dar muito trabalho e assim, é o próprio Furdela que fica a dever-nos a continuidade da saga. Pois no romance policial, nada deve ficar por esclarecer e, como se diz a boca pequena em nossa praça “queremos jostícia” e, certamente que Furdela não vai tirar o docinho da boca das crianças.Acto 3. Da(s) vítima(s)Sobre as vítimas, o livro é permeado por uma diversidade de perfis de vítimas, entre indivíduos, instituições e toda uma sociedade transnacional, onde na aparente unicidade dos eventos e/ou circunstâncias de vitimização, há espaços para reencontros e interligação de factos e circunstâncias que colocam cada vítima particular, no dia e local da ocorrência dos crimes. Somente um exímio narrador, que o Furdela é poderia mentalmente organizar a salada de vítimas e emprestar sentido através de letras e palavras, como aqui o faz.Acto 4. Das pistasEsta assente que a essência da narrativa policial é a busca pela identidade desconhecida, pelas esparsas fagulhas de pistas e a articcualção lógica de fragamentos de evidencias que vem a compor a totalidade das pistas. Nesta obra obra, Furdela planta pistas e armadilhas e convida o leitor a percorrer o fio da meada até desembocar no cerne da revelação. Um isquiero caido, imobiliárias a funcionarem como os “célebres veiculos operativos”, uma nota de cem dolares, uma fotografia reversa no espelho retrovisor e muito mais… compoem a riqueza de elementos explorados pelo autor para dar ancoras explicativas e gerir o fólego dos leitores enquanto se embrenham no afã de desenvar os mistérios que fazem a obra.Acto 5. Do DetetiveO detetive que Furdela criou veste bem as roupas de um herói folhetinesco, relativamente avesso às regras e propenso à soluções inusitadas, como reza a cartilha do bom romance policial, onde a criatividade e irreverencia são o motor da aventura da descoberta.A confirmar a sua inclinação para o Noir, os personagens que Furdela criou estão imbuídos das mazelas e vícios que caracterizam os comuns dos mortais: dados a uma boa pinga, fumantes inveterados, não fogem ao fogo da cama e são bons em pancadarias e distribuição de coronhadas, além de acelerações e drfits de carros pelas avenidas da Cidade de Maputo.Convenientemente, as sacadas investigativas e os fios soltos que denunciam os seus rastos são também explorados a partir desse caracter humanizado que são accionados como recursos capitalizáveis para a articulação lógica e concatenada apresentação de evidencias.Neste instigante romance, Furdela peca apenas por não nos dar, como leitores e comparsas do detetive, a chance de também arrolarmos as hipóteses que nos levariam a desvendar a trama antecipadamente! No seu autoral egoísmo de romancista do policial de primeira viagem, Furdela esconde e enrola-nos nos detalhes sórdidos que poderiam pontificar o fim da trama. Ainda bem! Na nossa mania de leitores espertalhões e sabichões, neste romance ficamos à nora, excitados e compenetrados na ânsia de desvendar o(s) mistério(s), o que o autor magistralmente sonega-nos até ao nada óbvio cair do pano nas últimas páginas.Contaminado pela sádica performance narrativa do autor, não serei eu, um casual apresentador da obra, quem via entregar os pontos.Acto 6. Do Autor / NarradorEu até poderia realçar a mestria com que o Autor se posiciona como narrador e o equilíbrio que estabelece entre a enunciação dialógica e descritiva. Mas prefiro pontificar a capacidade de descrever ambientes, que nos faz viajar nos espaços, ou criatividade com que descreve os personagens com especial atenção à explicação da razão de ser, origem do nome ou da alcunha: de Kufeni para Morrito, ou simplesmente fazer-nos entender como alguém chega a ser apelidado OneShot. Quase morri de rir.Acto 7. Do desfechoNa arte de narrar no estilo policial, o autor deve ter o compromisso de semear evidencias e minar toda a obra com potenciais vestígios e/ou indícios que possam nortear o percurso do leitor em busca da resolução. Entre a forma dogmática (o que deve nortear) e a ficção narrativa (o que é) oscila para salvaguardar, talvez, o interesse do autor em ampliar as avenidas dos enigmas e enriquecer as tramas, o que torna a obra de uma criação de não tão obvio e/ou expectável desfecho sem, no entanto, retirar-lhe a obrigatoriedade de verosimilhança, nas escolhas conclusivas.E com esta afirmação posso disputar com o autor a asserção académica que ensina que no romance policial o leitor deve sempre esperar surpresa, mas não uma eventual indignação ou inconformismo pela introdução de novas evidencias nunca antes ensaiadas ao longo da leitura, como se o leitor dissesse: Surpreenda-me, mas não seja incongruente no momento da revelação dos factos e das identidades dos criminosos.Ao cair da cortina, a resolução, o fim do suspense, até porque nos romances policiais não há crime perfeito! A reposição da ordem social e a confirmação de que o crime é uma forma de expressão avesso à ordem social é vincado na obra com uma valente troca de tiros e tocaias numa mansão ainda que, bem à moda moçambicana, ordens superiores rechacem a possibilidade de um desfecho morno, levantando suspeitas para a verdadeira dimensão de complexidade da rede criminosa.Mas também seria desengenhoso se o autor oferecesse um desfecho linear que pudesse minar a possibilidade de deliciar-nos de novas aventuras investigativas com que o autor possa querer brindar-nos na sequência da saga. O artista não morre!À partir do momento em que se começar a folhear o livro, todo o leitor que abraçar esta obra deve estar preparado para virar detetive e, dadas as condições de risco nessa missão, resta-me desejar “boa sorte” a todos e cada um dos que se predispuserem a desvendar a equação Zero sobre Zero, enunciada por Aurélio Furdela, nesse mirar dos passos e descompassos sobre o Espião que veio de Kigali.Acto Final:Com Zero sobre Zero, o Espião que veio de Kigali, Aurélio Furdela presenteia-nos com um romance policial bem humorado e fluído, ao mesmo tempo em que a riqueza de conteúdo presta-se a um retrato quase realista das historias contemporaneas e dramas politico securitários que caracterizam a sociedade moçambicana hoje. Para consumo pessoal, tomei a liberdade de apelidar este livro “A saga do trigésimo primeiro passageiro”. Os que lerem o livro saberão que enquanto não se desvendar o mistério do ruandês em causa, permanecemos suscetíveis a novas incursões criminosas… que só Furdela pode desvendar, certamente no seu próximo romance policialesco, querendo consolidar a escola literária que nas nossas bandas se forja!Muitos parabéns Aurélio Furdela e votos de uma prazerosa leitura a todos.Chidenguele, 25 de Junho de 2024

Fonte:O País

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