Joaquim Agostinho: 40 anos de saudade

0
105

Há quatro décadas, no dia 10 de maio, Portugal perdeu o seu melhor corredor de sempre. «O ciclismo português perdeu anos sem Agostinho», diz Marco Chagas, o seu delfim e sucessor. «Um herói bom»

Marco Chagas foi benjamim de Joaquim Agostinho, sucedeu-lhe como figura dominante do ciclismo português e não hesita em considerar o mentor, cujo 40.º aniversário da morte, prematura e em circunstâncias trágicas, assinala-se esta sexta-feira, «o melhor corredor português de sempre» e a «pessoa mais marcante» da sua vida.

«Um grande corredor, o melhor de sempre em Portugal. Pessoa humilde, amigo do amigo, enorme companheiro de equipa e de profissão. Enfim, boa gente!», afirmou a A BOLA, o ex-ciclista, de 67 anos, vencedor de quatro Voltas a Portugal.

«Infelizmente, perdemo-lo cedo demais. Digo-o desde sempre, e creio sem exagero, que o ciclismo português perdeu anos de evolução com a morte de Joaquim Agostinho. Houve um progresso sem precedentes devido aos feitos de Agostinho e depois do seu desaparecimento veio uma certa estagnação na modalidade no nosso país», declarou Marco Chagas, que tem memórias tocantes do fatídico dia 30 de abril de 1984, do acidente de Joaquim Agostinho no final da quinta etapa da Volta ao Algarve.

«Tive essa infeliz coincidência na minha carreira de ter vencido essa etapa na Quarteira, em que ele sofreu a queda… [pausa e um suspiro profundo] E mais tarde nesse dia, de estar perto dele nas horas que antecederam a sua hospitalização», recordou o antigo corredor do Lousa TriNaranjus , FC Porto, Mako Jeans e Sporting, entre as principais equipas portuguesas de Marcos Chagas, que, em 1980, aos 25 anos de idade, não hesitou em transferir-se para a formação francesa Push-Campagnolo a convite de Joaquim Agostinho, para o apoiar na Volta a França.

«Ainda era muito jovem e tive o privilégio de participar no Tour de 80 na equipa de Agostinho, em que foi quinto classificado. Foram tempos muito bons. Tão bons como os ensinamentos que ele me passou, com a sua experiência, sobre o funcionamento do ciclismo àquele nível, o mais alto. Longas conversas durante os treinos e quando, entre cada etapa, partilhávamos quarto de hotel, por toda a França. Agostinho era o meu herói, e ainda é. Um herói… bom!», diz Chagas sobre o malogrado corredor, natural de Brejenjas, Silveira, no concelho de Torres Vedras, que faleceu aos 41 anos, dez dias depois de intensa luta pela vida num hospital em Lisboa, a trepar uma montanha que lhe foi intransponível.

«Quatro anos depois da experiência no Tour, estávamos outra vez na mesma equipa, o Sporting. O presidente do clube então, João Rocha, decidiu fazer regressar o ciclismo à agremiação, e convidou Agostinho para formar a equipa e ele voltou a apostar em mim…», conta Marco Chagas.

Passavam poucos minutos antes das 11 horas da manhã de 30 de abril de 1984. Dois cães atravessaram-se à frente do pelotão em sprint na Avenida Infante de Sagres, em Quarteira, a 300 metros da meta da 5.ª etapa da 10.ª Volta ao Algarve. Joaquim Agostinho vestia a camisola amarela, conquista no contrarrelógio individual na véspera, e não conseguiu evitar um dos animais, caindo com aparato. Ficou estatelado, mas depois de alguns minutos no local voltou a subir para a bicicleta e cortou a meta amparado por dois companheiros de equipa do Sporting – um momento captado pelas câmaras de televisão, marcante, e que, pelo motivo mais grave possível, ficou para sempre como a derradeira imagem pública do ciclista em vida.

Após a trágica etapa da Algarvia, Agostinho, «por sua teimosia», recorda Artur Lopes, presidente da Assembleia Geral da Federação Portuguesa de Ciclismo, recusou deslocar-se, de imediato, ao hospital para ser examinado, preferindo recatar-se na unidade hoteleira onde a equipa leonina estava instalada. Uma vez lá chegado, poucos minutos depois do meio-dia, Agostinho começou a queixar-se de tonturas e foi transportado ao Hospital de Loulé, mas a indisponibilidade de máquina de raios-x fez com que se tivesse de recorrer à unidade central do Algarve, em Faro, onde chegou por volta das 13 horas, acumulando-se mais demora no diagnóstico da lesão.

Finalmente, aquele revelou fratura no crânio, com afundamento do osso parietal direito, implicando neurocirurgia, para o que aquele hospital não estava habilitado e que seria realizada em Lisboa. A viagem para a capital foi feita de ambulância, uma vez que a burocracia necessária retardaria o recurso a helicóptero, que encurtaria muitíssimo o tempo da transferência do atleta. Agostinho deu entrada no Hospital da CUF e foi operado dez horas após o acidente. Entrou em coma e dez dias depois não resistiu.

«Primeiro, foi a teimosia dele, a dizer que não era nada. Depois, a falta de condições nos hospitais da região e a longa viagem para Lisboa», afirma ainda Artur Lopes.

«Naquele dia, Portugal não mereceu um atleta daqueles», afirmou alguns anos depois da morte de Joaquim Agostinho aquele que foi o seu antecessor no Tour, Alves Barbosa, o primeiro corredor português a classificar-se nos dez primeiros da Volta a França, em 1956, referindo-se à falta de condições de assistência a «um homem que fez o que ninguém tinha feito e que mais ninguém fez», graças a «a ser uma força da Natureza, com um físico nascido da terra».

«Em 1984, no ano da morte de Agostinho, voltei a participar no Tour. A organização da prova, em sua homenagem, decidiu manter o convite ao Sporting. Inesquecível. Joaquim Agostinho foi uma grande referência no Tour, que será sempre a sua corrida de eleição, a que estará eternamente ligado», referiu Marco Chagas. «Ele foi segundo na Vuelta e esteve muito perto de a vencer [1974], mas foi no Tour que deixou a sua maior marca, em que será sempre recordado, não apenas pelos dois terceiros lugares à geral [1978 e 79], mas pelos extraordinários desempenhos em etapas. Em 13 participações na corrida francesa, Agostinho ganhou cinco etapas: duas em 1969, uma em 1973, outra em 1977, e mais célebre de todas as vitórias, a que terminou no mítico Alpe d’Huez, em 1979.

Em 2019, em entrevista à Lusa, belga Eddy Merckx, eleito melhor corredor do século XX pela União Ciclista Internacional e para muito o melhor ciclista de todos os tempos, lembra-se dos «domingos de fiesta» pedidos por Joaquim Agostinho durante as etapas da Volta a França corridas nesse dia da semana, entre as «muitas boas recordações» de um «grande atleta».

«Às vezes, ao domingo, dizia-nos, no meio do pelotão, na brincadeira, que era dia de ‘fiesta’ [festa], para irmos com mais calma. Tenho muitas boas recordações. Era um sujeito muito simpático, um grande atleta», contou Merckx na mesma entrevista.

O Canibal disse que Joaquim Agostinho era «impressionante em etapas de sobe-e-desce», como numa das etapas do ano de estreia do português no Tour, em 1969. «Ele [Agostinho] ia fugido [em fuga] e nós não conseguíamos apanhá-lo. Era muito forte mesmo», elogia o belga, de 78 anos, vencedor de cinco Voltas a França.

Dois terceiros lugares no Tour e um segundo na Vuelta. Tino de Portugal era um dos mais respeitados do pelotão mundial.

Joaquim Agostinho começou tarde na vida a andar de bicicleta e praticar ciclismo. Tinha 25 anos. Fê-lo depois de cumprir o Serviço Militar em Moçambique e com o dinheiro que amealhou na tropa comprou uma bicicleta. Ainda pensou num gravador ou num gira-discos, contou ao jornal A Bola, na edição de 7 de dezembro de1968.

Antes de participar em corridas, Agostinho utilizava a bicicleta apenas como meio de transporte, mas não demorou a experimentar as forças em competições regionais. E começou a ganhá-las. Após mais uma que venceu, o Circuito do Barro, João Roque, vencedor da Volta a Portugal no ano de 1963, convidou-o para prestar provas no Sporting. Em fevereiro de 68, ingressava no clube de Alvalade.

Nesse ano iniciou-se em profissionalismo e desde logo com estreia na Volta a Portugal. Conquistou o segundo lugar. Ainda nesse ano venceu a Volta ao Estado de São Paulo, a sua primeira consagração internacional, onde as suas capacidades não passaram despercebidas ao francês Jean de Gribaldy, que o convidou para a sua equipa.

Agostinho ganhou a Volta a Portugal entre 1969 e 73, mas foi desclassificado por doping nas edições de 69 e 73. Venceu 22 etapas dessa prova. Entre 1968 e 73 ganhou seis vezes consecutivas o Campeonato Nacional de Fundo e de Contrarrelógio.

No início de 1969 Joaquim Agostinho e Leonel Miranda a fizeram um estágio em França junto da equipa da Frimatic, comandada por Jean Gribaldy, um homem que viria a ser determinante na carreira do melhor ciclista português de todos os tempos e que percebeu logo que estava ali um diamante em bruto, conseguindo que o Sporting autorizasse Tino, como carinhosamente era conhecido o português, a participar em algumas competições pela equipa francesa.

Começou pela Volta ao Luxemburgo, onde discutiu a vitória embora tenha acabado no 12.º lugar, mas convenceu Gribaldy a levá-lo ao Tour, onde teve estreia espantosa: ganhou duas etapas e foi 8.º da geral. No ano seguinte foi promovido a chefe de fila da Frimatic e foi 14.º classificado no Tour, passando a correr pelo Sporting apenas na Volta a Portugal e no Campeonato Nacional de Fundo.

Em 1971 passou a representar a Hoover, equipa também chefiada por Gribaldy, que lhe garantia a participação na Volta a França como líder da formação. O português correspondeu com o 5.º lugar na geral.

Na temporada seguinte, Agoastinho correu pela equipa belga da Magniflex, igualmente Jean Gribaldy, apostando na Volta a Espanha, mas foi forçado a desistir por queda quando discutia os primeiros lugares da geral. Na Volta a França foi 8.º.

Em 1973 passou para a equipa espanhola BIC, liderada por Luís Ocaña, que nesse ano, com o apoio do português na estrada, foi segundo classificado na Vuelta e venceu o Tour, provas em que Agostinho alcançou o 6.º e 8.º lugares, respetivamente. Em 1974, ainda em representação da BIC, o corredor luso destacou-se na Vuelta, com a 2.ª posição, a apenas 11 segundos do vencedor, o espanhol Jose Manuel Fuente, e também no Tour com o 6.º posto.

Tino de Portugal dedicou-se, então, apenas às corridas no estrangeiro, e apostou no Tour, onde corriam os melhores do mundo. Em treze participações, Agostinho ficou oito vezes nos dez primeiros da geral, entre os quais dois terceiros e ainda cinco vitórias em etapas, incluindo uma que terminou no mítico Alpe d’Huez, em 1979. Na Volta a Espanha participou cinco vezes, e além do 2.º lugar de 74, ganhou três etapas e vestiu a camisola amarela durante cinco dias. Nessa altura correu pela Teka em 1976 e 1977, no primeiro destes anos foi 7.º na Volta a Espanha e no segundo 13.º no Tour e 15.º na Vuelta.

Regressou ao ciclismo português, para o Sporting, em 1984, com 40 anos.

Fonte: A Bola

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor, digite seu nome aqui
Por favor digite seu comentário!