A pureza mercantil em Dany Wambire

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Por: Alfredo Cone O conto “A mulher sobressalente” (que intitula o livro de Dany Wambire), faz parte de  uma obra literária constituída por um total de 10 Contos. Nesta narrativa, o escritor dá voz a uma narradora autodiegética, o que pressupõe ser a protagonista.A narração acontece na primeira pessoa, o que permite que as dores da personagem seja “visíveis” aos olhos de quem lê o texto.“A mulher sobressalente” é uma história de uma rapariga do campo, que é arrancada da cidade, para onde fora morar, enquanto a menstruação não descia, de modo a assumir a responsabilidade de liquidar as dívidas do pai e salvar o casamento da irmã mais velha. Por isso, Quinita, “A mulher sobressalente”, é obrigada a aceitar as violações do cunhado, com a anuência dos pais e da irmã mais velha,  para gerar um varão.No conto “A mulher sobressalente”, a vida sofrida da protagonista cabe toda na seguinte passagem textual: “O teu pai te quer como peça sobressalente da família”, e Quinita “ calou-se enquanto dos seus olhos ainda vertiam lágrimas” (Wambire, 2018, p. 47).Por um lado, os trechos mecionados acima são passagens textuais que configuram uma autêntica detonação de abuso e violação dos direitos da rapariga, que se tornam mais graves por ser perpetuada pelos seus próprios progenitores, o que frustra a possibilidade de Quinita poder desfrutar da adolescência e perseguir os seus sonhos.Por outro lado, as passagens mencionadas expressam a dura realidade da protagonista, denunciando as fragilidades de uma tradição construída sobre tabus, mitos e lendas.  Há uma espécie de “estética da angústia” discritas  no mundo das personagem de Wambire. Neste conto, a angústia deixou de ser um fenómeno factício. Quinita não respira livremente, porque vive atormentada pela incerteza. Vejamos o seguintesuspiro da personagem protagonista: “como pangolim,enrolei-me por uns minutos” (Wambire, 2018, p.47).A força semântica do título remete-nos para um exercício de extrapolação de conflitos de significados entre objectos ou peças de viaturas e o corpo de uma mulher.Consultado o dicionário online de língua portuguesa, o termo sobressalente refere a um acessório ou item de reserva com que se substitui outro já usado ou defeituoso.Embora o termo sobressalente exista em outros saberes, em Moçambique,  muitas vezes que se usa esse termo é para se referir a roda de reserva de veículos, carros.Quinita, ao ser obrigada a relacionar-se sexualmente com o seu cunhado para gerar um filho, ela é usada como uma peça sobressalente, não para veículos, mas sim para o lar. Assim,como um pneu de viatura, uma vez sem ar deve ser substituida, Quinita também substitui a sua irmã, que, como um pneu furado, acredita-se, no enredo, que perdeu ar, isto é, a capacidade de gerar um varão tão almejado pelo marido.Para a irmã de Quinita, não poder gerar um menino era o mesmo que um pneu furado, sem ar e digna de uma substituição para se reparar o defeito.Mas porquê a obsessão por um menino? Nas várias comunidades moçambicanas, o menino é uma espécie de garantia da continuidade do apelido paternal, da linhagem e da sucessão. Os excertos a seguir dissipam qualquer dúvida, porquanto confirmam o dever de se gerer um menino: “quando o meu pai soube que a criança era um menino, se apressou a abraçar, com muita efusão, ao meu cunhado. E desse abraço, ouvi o seguinte: Dívida paga. Já não vou devolver nada do que me deste pelo lobolo da minha filha[mais velha]”. (Wambire 2018, p. 45).Depois de nascer, o bebé é arrancado dos braços da mãe, Quinita, afinal. “ – Este bebé fica aqui. Pertence agora à tua irmã. Tu fizeste-o para ela. Assim salvaste-lhe o casamento, pois ela só fazia meninas” (Wambire 2018p. 45).Diante da indignação de Quinita, o pai responde, autoritário: “ – Isso é tradição e pronto. Vamos para casa” (Wambire 2018p. 45). E a rapariga obedece.Em Wambire, qualquer esclarecimento que leva a crer que os maus tratos, o sofrimento e o abuso sexual que caracterizam a vida da personagem é normal ao projecto social, na verdade, é deprimente.As acções da personagem protagonista, o sofrimento que a vida lhe proporciona, enquanto jovem que vive à beira do precipício, condensam, num só momento, as maquinações diegéticas e sentimentais do mundo, inscritas em o Livro do desassossego, quando o poeta afirma que tudo se “tornou insuportável” (Pessoa, s.d., p. 70).No conto “A mulher sobressalente”, a tradição é uma prisãoque usa, humilha, subalterniza e desgraça a protagonista da história e a própria irmã de Quinita, embora se beneficie da tradição, por ter o lar garantido depois de o marido conseguir o almejado filho.O conto, A mulher sobressalente, de Dany Wambire cria uma espécie de angústia ao leitor. Entre o imaginário e o real, traz à tona o peso da memória de uma sociedade que oscila entre o passado, presente e o futuro preso numa tradição que busca o seu fundamento em mitos. Não há como o leitor deixar de sentir o nó na garganta e o aperto no coração a cada desfecho de cada parágrafo, a narrativa de Wambire nos remete para um mundo que parece improvável, mas que infelizmente não  é.Pois este cenário acontece ainda nos dias de hoje, sobretudo nas zonas mais recóndidas, como em Maúa, na província do Niassa. *O texto de Alfredo Cone foi escrito no contexto da Oficina de escrita: crítica de arte, organizada pela Fundação Fernando Leite Couto, com a pretensão de estimular a crítica artística no país.

Fonte:O País

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