O Menino e a Garça: um ode ao fim, à vida e aos recomeços
O Menino e a Garça é um filme de anime e é um daqueles que já nascem clássicos. O longa, vencedor do Globo de Ouro na categoria de Melhor Animação, também indicado ao Oscar na categoria de Melhor Animação, e que na minha opinião, também leva a estatueta no próximo Domingo (10) tem todo esse sucesso, graças à genialidade de Hayao Myiasaki, o idealizador de grandes obras como A Viagem de Chihiro (já vencedora do Oscar de Melhor Animação), Meu Amigo Totoro, Castelo Animado e Princesa Mononoke. O autor acerta em cheio ao trazer temáticas tão sensíveis de uma forma sagaz, leve e inspiradora.
O filme, na minha opinião, se divide em três atos: no primeiro, passeamos pelo mundo de Mahito, entendendo suas dores, aflições e temos contato com a sua busca. No segundo, mergulhamos no mundo fantástico e suas representações de uma busca pelo equilíbrio, entendemos também que o que existe ali, é signo para o mundo em que vivemos e que tudo ali presente faz parte de um ciclo. No terceiro ato, entramos na mente do autor, em um universo filosófico e reflexivo, enquanto assistimos um senhor em sua eterna construção de uma torre, montada com muita paciência, peça à peça, bloco à bloco, obra à obra.
Uma obra de vida
O filme do renomado Studio Ghibli, fala sobre assuntos como a vida, a morte e o pós-vida, não de uma forma tão direta e abrupta, mas alegórica e sutil. A obra é inspirada em um livro clássico japonês de 1937 de Genzaburo Yoshino chamado “Como você vive?” e justamente essa pergunta é que vai permear os pensamentos de Myiazaki, enquanto ele conta essa história através de um garoto chamado Mahito, um jovem que perdeu a mãe em um incêndio em plena segunda guerra mundial e desde então parece sempre estar na busca de algo para suprir este vazio.
Algum tempo depois da morte da mãe, Mahito e seu pai saem de Tóquio e vão para o campo, morar em um casarão de sua tia Natsuko, irmã de sua mãe, agora apresentada pelo próprio pai como sua “nova mãe”. Natsuko está grávida, esperando um filho do pai de Mahito. Por conta disso, Mahito vive nessa dualidade entre gostar da doçura de Natsuko e odiar o fato dela estar tomando o posto de sua mãe.
Repare bem que mais cedo eu disse que acompanhamos essa jornada “através” e não “com” Mahito, isso por que o personagem é quase um guia, um jovem curioso e explorador que segue seu instinto e vai abrindo portas, avançando por camadas cada vez mais profundas e fantasiosas desse universo completamente novo e fantástico. Mahito é curioso por que busca algo, é explorador por que precisa encontrar o que lhe falta. Enquanto a vida lhe apresenta novas oportunidades para continuar vivendo, (uma nova mãe, nova casa, novos amigos e novas histórias) ele busca incessantemente respostas para corrigir o incorrigível. E assim, querendo encontrar um sentido no fim, ele encontra um recomeço.
Com tanto esmero e cuidado, O Menino e a Garça apresenta através de signos, muitas visões sobre o pós vida e até mesmo sobre a pré vida. Mahito vê esses signos e entende que apesar de fantásticos, eles refletem no que é real e palpável, percebe que precisa compreender o que está ao seu redor e fazer com que essa descoberta seja vista e lembrada, nem que seja trazendo consigo, algo pertencente ao mundo fantástico.
A busca pelo resgate às origens
O entendimento de Mahito sobre o mundo, os ciclos e as mudanças na busca pelo resgate do que “era” e não daquilo que “pode ser”, mostra um Hayao Myiazaki reflexivo sobre sua própria obra, que olha para o passado enquanto aceita o novo, abraça novos ciclos e busca por que não, mostrar que deixou um legado.
Enquanto assistimos a O Menino e a Garça, vemos diversos elementos já presentes em outras obras mais antigas do Studio Ghibli com pausas maiores, cenas lentas e contemplativas, com a intenção de fazer quem assiste, mergulhar com tudo naquele universo, naquela natureza viva, naquele mundo de espíritos, seres fantásticos e personagens cativantes.
Assim como em outros filmes do Studio (nesse, devo dizer que o Myiazaki até passa um pouco do ponto), a animação em si, beira o surrealismo, com cenas repletas de seres que se transformam e trazem essa estranheza pra quem assiste. A garça, que no começo é toda plena, com um vôo suave e movimentos elegantes, se transforma em um anão desengonçado que parece estar usando a cabeça da garça como um capuz de um moletom, um pássaro rechunchudo que voa esquisito e parece um mosquito… É sério, até os efeitos sonoros do vôo dele parecem daquele pernilongo que vem atormentar o sono de madrugada.
Depois de apresentar toda essa maluquice, o filme nos leva para um momento mais sério, reflexivo e contemplativo. É o momento em que o assunto principal do filme se torna mais palpável, quando se fala sobre morte, vida, ciclos e recomeços. E isso tudo com a ajuda da trilha lindíssima e emocionante de Joe Hisashi, parceiro de longa data de Myiazaki. Graças a ele somos levados pelas emoções que precisam ser sentidas em uma obra tão profunda e reflexiva. Enquanto somos imersos em um universo que se destaca pela habilidade única do diretor em criar uma natureza viva e repleta de detalhes deslumbrantes.
O legado de Hayao Myiazaki
Estamos assistindo, provavelmente, à obra de aposentadoria de um dos maiores diretores de animação da história. Uma obra que condensa todo o potencial criativo e filosófico adquirido por ele durante mais de 60 anos de carreira em animação, uma história que traz a visão dele sobre o fim, sobre o legado e sobre os recomeços que vêm a partir desse mesmo legado. Um filme lindo, existencialista e reflexivo que merece ser visto e admirado.
Fonte: Pippoca