Por: Orlando Muchongo
A produção literária não serve apenas para o desenvolvimento artístico dos moçambicanos. Quase toda a literatura produzida, ao nível nacional, alberga valores históricos e culturais. Exemplo disso é o texto “A porta”, de Mia Couto, publicado no livro O país do queixa andar (2003). Trata-se de uma crónica que retrata “uma porta que, em Moçambique, se abria para Moçambique”.
Junto da porta havia um porteiro. Neste cenário, vários cidadãos moçambicanos aparecem solicitando passagem, mas a personagem do porteiro, instigada por vozes não identificadas, recusa o pedido de todos, com a excepção do indivíduo de origem estrangeira, que chega “mandando em inglês” e, de seguida, compra a porta, o porteiro e mete a chave no bolso.
Como se pode reparar, o universo narrativo de Mia é repleto de registos temáticos que definem a estética do autor. Por conseguinte, na sua crónica identificamos vários aspectos sobre os quais podemos reflectir. Tomemos como ponto de partida o título do texto: “A porta”.
Num primeiro momento, parece que estamos diante de uma passagem que dá acesso a algum lugar, como ilustra a seguinte passagem: “(…) abria de Moçambique para Moçambique”. No entanto, num olhar mais aprofundado, pode-se perceber que “A porta”, mais do que uma entrada, é uma metonímia que representa um todo: sectores públicos e privados do país, onde encontramos cidadãos moçambicanos empregados, que, por várias razões, dificultam ou, por outra, recusam o acesso aos seus próprios concidadãos. No texto, essa actuação é sustentada por passagens como esta: “– Esse aí é do Sul, estamos cansados destas preferências”.
A análise à crónica “A porta” expõe-nos a actualidade moçambicana, o que nos leva a acreditar que Mia Couto faz parte do universo dos escritores moçambicanos que podemos considerar “Cidadãos deste presente”.
“A porta” é um texto publicado há 20 anos, porém os fenómenos que a crónica retrata repetem-se, até de forma mais intensa, nos dias actuais.
Nota-se na narrativa que Mia Couto é uma espécie de veículo literário, transportando valores por meio de um texto que define um contexto, como se pode verificar em autores como José Craveirinha, no poema “Ninguém”, de Karingana ua Karingana.
Na parte final da crónica de Mia Couto, há um assunto que vale a pena apresentar, a questão de uma mentalidade etnocentrista, tribalista, egoísta, gananciosa e, se quisermos, de carácter impositivo, que no texto é expresso pela personagem do porteiro e das vozes não identificadas.
No texto há vários sujeitos moçambicanos que, de diversas formas, solicitam a passagem pela porta, mas, a raça, a proveniência, a cultura, a língua, entre outros aspectos, impedem-lhes a passagem.
Considerando a riqueza textual de Mia Couto, julgamos oportuno ler “A porta”, para sabermos dialogar com a realidade moçambicana numa intercepção entre o passado e o presente. Só assim poderemos, como povo, olhar além da porta
*Texto escrito como actividade da oficina A escrita e a crítica literária e jornalística, orientada pelo ensaísta e jornalista José dos Remédios, no Centro de Língua Portuguesa, Faculdade de Letras e Ciências Sociais, Universidade Eduardo Mondlane.
Fonte:O País