Revista Tempo

Percam à vontade, mas tragam o prémio do público

Percam à vontade, mas tragam o prémio do público

Vou rezar para que não ganhemos nada a não ser o prémio de favoritos do público, quais estetas injustamente derrotados por uma das tradicionais máquinas de ganhar

Há uns dias conversava com amigos sobre o próximo europeu de futebol quando demos por nós a recordar a vitória em 2016. Foi uma noite extraordinária, em Paris e em Lisboa, onde celebrei com centenas de milhares de pessoas. Não me lembro da noite toda, por razões que não vêm agora ao caso, mas havia uma crença algo estúpida naquela equipa que nem jogava assim tão bem. O futebol nunca deslumbrou, mas a equipa foi levando a água ao moinho e aquela improvável dupla técnica dos últimos minutos – Fernando Santos e Cristiano Ronaldo – encarregou-se do resto. Foi bonito confirmar que o nosso país podia vencer uma coisa tão grande quanto um campeonato europeu, especialmente depois das várias desilusões desde 1996, sempre com um futebol bonito cronicamente destinado ao insucesso. Quis o destino que uma seleção pior do que algumas dessas anteriores acabasse por vencer a prova, um pouco como a Grécia nos tinha feito em 2004.

Não sei onde pára o adepto da seleção que assistiu a tudo isto em 2016. Eis aquilo a que fui assistindo: desde 2016, a seleção retomou a sua trajetória mais lógica, falhando em todas as competições internacionais disputadas, exceto numa competição – Liga das Nações – inventada por portugueses. Lembro-me de uma derrota sem espinhas no Euro seguinte, lembro-me de perdermos justamente com Uruguai, e, mais recentemente, depois de uma goleada à Suíça que fez de nós os favoritos nas casas de apostas, aquela lição da seleção marroquina que nos pôs mais uma vez no lugar. Ao longo de todo este processo, a seleção raramente produziu o futebol vistoso a que as convocatórias obrigavam, preferindo antes entreter-se com o teste de outras hipóteses, por exemplo, quantos cruzamentos inconsequentes é possível fazer para a cabeça de Cristiano Ronaldo durante 90 minutos, ou quantos livres frontais vamos deixar o Cristiano marcar até percebermos que isso é um erro.

Ao longo deste caminho penoso, a seleção foi comandada por um treinador com uma espécie de contrato vitalício que, segundo os tribunais, não era afinal de treinador mas sim de gestor de empresas, o que talvez explique a inaptidão para a liderança tática. A ideia de jogo da seleção foi sendo esquecida em prol da atividade de uma empresa de brindes. Lembro-me que esta saga de mau futebol terminou quando eu já pouco ou nada queria saber acerca da seleção. Em todos estes momentos, várias figuras foram perdurando até se tornarem uma presença inexplicável, e Fernando Santos não foi a única. Lembro-me por exemplo da claque da seleção chefiada por Fernando Madureira em múltiplas provas internacionais. Lembro-me das convocatórias dúbias em que a coisa mais parece escolhida por um empresário do que pela pessoa contratada para o fazer. O problema de me lembrar de todas estas coisas é que a seleção passou a ser muito mais isto do que qualquer outra construção romântica.

Entretanto veio Roberto Martinez. Tal como os restantes interessados na modalidade, fui acompanhando aqui e ali as vitórias gordas de uma fase de apuramento jogada contra amadores. Depois de muitos anos a fazer contas ao apuramento, Portugal descobriu que tinha condições para se apurar para competições internacionais sem ter que se chatear demasiado com isso. Ainda esbocei um olhar para a televisão em busca de uma nova ideia de jogo que me entusiasmasse, mas rapidamente percebi que o desinteresse se mantinha – e é mais profundo do que eu gostaria. Não consigo explicar tudo o que aconteceu entre 1996 e 2004, mas sinto que nunca mais vou ver seleções que se divirtam tanto em campo e nos divirtam tanto como as desse período. Hoje, esse carrossel viu-se substituído por um sem número de animais competitivos que estão proibidos de fintar 5 jogadores da equipa adversária e que só arriscam fazer dois passes consecutivos com o calcanhar se a sua equipa tiver uma vantagem superior a 4 golos e já passarmos do minuto 90.

Em suma, a seleção não tem vida fácil comigo. Ao cinismo cuja origem descrevo nos parágrafos anteriores, junta-se este saudosismo meio tolo (admito) que me leva a preferir seleções que jogaram muito bem e perderam como sempre, a sonhar com uma seleção que joga assim assim, mas que é muito competitiva e séria e talvez, só talvez consiga ganhar qualquer coisa. É um pouco estranho gostar tanto de futebol e ter tão pouco apetite pela seleção do próprio país, mas é aqui que estou. Sempre achei o cântico «pouca importa se jogamos bem ou mal / queremos é levar a taça para o nosso Portugal» uma idiotice. É uma tentativa de sujeitar um país à ideia de que só a vitória importa, ignorando aquele que deve ser o desígnio de qualquer seleção portuguesa: jogar bonito, fazer as coisas que não é suposto fazer-se no relvado, ser uma espécie de Brasil europeu, não se levar excessivamente a sério, e, como tal, só muito raramente satisfazer a expectativa criada por um povo demasiado otimista no que aos seus futebolistas concerne – mas pelo menos chegamos ao fim com a barriga cheia de futebol. Foi mais ou menos isto que sempre me fez gostar do futebol de seleções, tanto na equipa portuguesa como naquelas surpresas que aparecem de rompante numa competição e levam tudo à frente até embaterem na realidade de uns quartos de final resolvidos nos penáltis. Vai tudo para casa sem medalhas, mas recebem o prémio do público. Já não é nada mau.

Há poucos dias, imbuído do espírito pré-europeu, lá fui espreitar o jogo frente à Croácia, um coletivo de futebolistas profissionais que nos pôs no devido lugar. Frente à primeira seleção de nível mais elevado em sei lá quantos meses, vi muito pouco da habilidade natural dos jogadores portugueses e quase nenhuma capacidade de competir contra uma equipa croata que tem o dom de fazer o futebol parecer contabilidade, e ganha mais vezes do que perde. Aguardei pelo show de bola da fase de apuramento, e nada. Mas não desisto. Não sei bem como se resolve a descrença, mas lá voltarei a dar uma oportunidade à seleção, até porque não há mais futebol para ver. Já tenho tudo planeado. Em primeiro lugar, se a agenda me permitir, juntar-me-ei em espírito à claque da seleção nacional, agora sem a liderança decisiva dos Super Dragões que tantos motivos de orgulho nos deu nos últimos anos. Depois, vou evitar as conferências de imprensa ou as entrevistas de Roberto Martinez em que este fala sobre jogadores do Benfica como se fosse um comissionista de Jorge Mendes. Finalmente, vou rezar para que não ganhemos nada a não ser o prémio de favoritos do público, quais estetas injustamente derrotados por uma das tradicionais máquinas de ganhar. Não me chateava nada.

Fonte: A Bola

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