Revista Tempo

Abençoados os pobres de espírito

Por: Vitor Gonçalves Comecei a ler, aqui no NASCER DO SOL, o manifesto anti – Mia, do João Vasco Rodrigues (JVR), convencido que a coisa era sobre literatura. Engano – percebi logo na segunda linha. Afinal, é uma nova receita de bacalhau. Abóbora! Afinal também não o é – entendi logo a seguir: é antes um ataque cerrado aos serviços gerais de empacotamento avulso. Mas, não percebi bem qual a dimensão do pacote em causa, nem o destinatário do envio. Mas que texto tão ricamente embrulhado, que magnífico labirinto de metáforas; a que vastos e profundos becos somos conduzidos, pela galharda prosápia do autor. É notável, como dispara – linha, após linha, após linha – múltiplas e absolutamente desnecessárias descobertas sobre tantos, tão diversos e complexos assuntos. Um verdadeiro paladino de verdades gerais. E, mesmo quando – modestamente – nos inclui nas suas geniais descobertas geográficas: – “Todos sabemos como África permanece um continente vastíssimo e ainda desconhecido.” – não deixa de vincar o carácter inovador e mesmo disruptivo do seu pensamento. Como nunca tinha eu pensado nisto? De facto, ele tem toda a razão: a África não tem encolhido quase nada, permanece um continente vasto, como sagazmente conclui. Por que será? Arguto, o autor responde fingindo que não sabe, mas sabendo, como não podia deixar de saber, porque o escreve. É claro que é por causa daquilo que ele afinal conhece, mas finge – só para nos entusiasmar – não conhecer: “Conhecemos apenas os seus desastres: as secas, as chuvas intensas, os ciclones, a fome severa…”. Brilhantemente original. Registe-se o inteligente uso das reticências nesta frase, deixando-nos, poeticamente, vogar pela tal vastidão do Continente, de desgraça em desgraça. Honesta e definitiva a confissão. Quem bom, que ele nos alerte para o facto. E sim, desconhecido, como conclui. Magnífica, a forma incansável como, palavra a palavra, JVG nos dá um cabal testemunho dessa tão comum ignorância. Notável, como cada uma das suas declarações comprova o seu axioma. Que se cale de Pangloss toda a redonda retórica, Cândido tem novo mestre.Só me atrevo, um quase nada, a perturbar a clarividência do autor para reclamar pela irritante e contumaz falta do artigo em África. Que diabo, pobres seremos, mas isto de sermos o único Continente que nem artigo pode ter já me cansa. Em Moçambique não temos posses para ter quatro estações por ano. Temos duas e a muito custo. Ao menos deixem-nos um artigo bem definido.Imparável, JVG, passa da ignorância assumida sobre o Continente, para a ignotícia sobre o Mia Couto. E, numa hodierna reinterpretação do Mapa cor-de-rosa – na qual nos revela o seu profundo conhecimento de alguns arcanos e misteriosos sortilégios africanos – empacota o Mia e o Agualusa na tal literatura africana e, com aquela audácia que só a profunda ignorância permite, declara-os …”(…)dois vendedores de banha da cobra,(…) dois capatazes dissimulados de uma literatura africana(…). Que inteligência, que argumento subtil. Vejam como ele metaforiza bem, como domina a antropologia e a História, como sintetiza – a África, as cobras e os capatazes numa polida frase. Navega, de metáfora em metáfora, com a delicada elegância do hipopótamo, para nos atermos à fauna local.“Talvez tenha chegado o momento de nos atravessarmos. E foi assim que por estes dias nos atirámos à leitura de “Compêndio para Desenterrar Nuvens”. Esta é que me deixou de rastos. Confesso, agora estou entusiasmado! Isto vai aquecer, o plural majestático não nos permite duvidar. Ele atirou-se – e sem rede como se percebe – à leitura de um livro. E teve a generosidade de o ler todo! É sobre-humano, como num ápice, ele alcança uma compreensão tão profunda e genuinamente ignorante da obra do Mia. Como, num relance, percebe que todos os que ao longo das últimas décadas admiraram a sua escrita estão errados. Com que coragem denuncia a enormidade da conspiração intercontinental, que levou dezenas de incautos a, um pouco por todo o mundo, atribuírem os mais conceituados prémios da literatura a tal homem. Ora, lá está outra vez o tal mistério africano que parece atormentar JVG. Mas, como é que faz para conseguir ser o único a marchar com o passo certo nesta multidão de coxos? E os adjectivos, já mediram bem o trabalho que dá atingir aquele nível de vulgaridade? É obra. Os mais incautos de entre nós ainda poderiam vislumbrar, por entre as palavras assanhadas, um verde assomo de inveja por tantos e tão prestigiados prémios, por tão longa e profícua carreira. Os mais distraídos, talvez pudessem pensar que tanto azedume não passa de uma tentativa serôdia e disparatada de, ao se confrontar com algo que não pode emular, sublinhar publicamente a sua incapacidade. Uma espécie de Salieri caseiro, um pequeno Iago. Mas não consigo acreditar que tão dramático objectivo habite em tão irreflectida prosa. Nem percebi bem a metáfora culinária do bacalhau, ou a da banha.E, confesso, que não fui suficientemente perspicaz para entender JVG, quando, magnânimo, declara: Se, por um lado, nos vem oferecido diariamente como uma espécie de herói da literatura africana,  por outro, talvez nos bastasse o dia em que deixasse de escrever e de interferir na dinâmica da edição de livros, para que pudéssemos então começar a ouvir falar daquilo que nos oferecem grandes escritores como Maryse Condé, Aimé Césaire, Luís Bernardo Honwana ou Achille Mbembe. Fiquei confuso. Será uma intrincada citação de Camões – “Cesse tudo o que Musa antiga canta”? Por momentos, debati-me com a complexidade da proposta. Depois percebi a meridiana clareza da ideia: para promover a literatura, é preciso que um escritor deixe de escrever. Não sendo Camões, será Goebbels? Ultrapassa-me.“Herói da literatura africana”, não sei bem se o Mia o será, mas se JVG diz que o é, lá terá as suas razões. Mas acreditar que o seu heróico super-poder lhe permite estender a sua influência maléfica pelo espaço, do Índico às Caraíbas, para silenciar Maryse Condé; e pelo tempo – para calar Césaire e atirar Honwana aos cães; e convencer os Camarões e a Sorbonne que fazem mal em ler o Mbembe, porque ele está mesmo aqui à mão… isto não sei se o Mia o conseguirá. Mesmo com o recurso aos tais mistérios africanos já listados. Mas JVG diz que sim. E ele lá saberá o que diz.Indomável, não hesita em discorrer sobre o que ignora. E passa ao ataque! Então não é que o Mia, em vez de aplicar o dinheiro em vacinas e nessas coisas a que os africanos se devem dedicar, teve a coragem de participar na criação de uma Fundação dedicada à literatura e à arte? Mas que raio? Que sentido é que faz um escritor querer promover a literatura – e o incentivo a jovens escritores; e a reflexão sobre a cultura moçambicana; e o teatro e as centenas e centenas de eventos com que, desde a sua criação, a Fundação Fernando Leite Couto tem marcado a vida cultural da capital moçambicana? Pois claro, vê-se logo que JVG talvez saiba do que não fala e se mantém consistentemente desinformado sobre o que se passa em Maputo.Faltava o golpe de mestre. O argumento derradeiro e imbatível. Então não é – denuncia, garboso, o articulista – que não satisfeito com tanto êxito, o Mia ainda teve o dislate de promover a venda de livros a preços acessíveis ao comum dos cidadãos moçambicanos? Mas então? Então, tem algum sentido que um escritor, em vez de se preocupar com as leis do mercado – que JVG tão lustrosamente quer defender – se dedique, ao contrário, a tentar levar os seus livros ao maior número de pessoas possíveis, ao mais reduzido preço que consegue? E que, não contente com o dislate, este escritor moçambicano, tente que os seus títulos sejam publicados em Moçambique, por uma instituição moçambicana? Blasfémia!E, finalmente, com o espírito de indómito cruzado que anima toda a sua catilinária, João Vasco Rodrigues termina com um apelo directo a deus.Estou certo que será ouvido. Ou não fosse dos simples o reino dos céus.       

Fonte:O País

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