Revista Tempo

Evelina Nhassengo

Escrito por: Alexandre Chaúque

Já ninguém se lembra dela na cidade. O melhor seria mesmo dizer que ninguém a conhece. Digo isso porque os seus contemporâneos emigraram para terras desconhecidas, outros morreram, e os que aqui ainda se mantêm, suicidaram-se como a própria Evelina Nhassengo, que passou a viver sozinha, como sempre viveu, no seu casebre na zona da Mafurreira. Quer dizer, o suicídio a que me refiro é esse mesmo, de ficar recolhida. Sem frequentar a sociedade. Pior do que isso, ruminando as feridas de não ter conseguido juntar nada na vida, nem que fosse por coincidência.

Se você pergunta aos jovens que demandam hoje os mesmos lugares onde Evelina Nhassengo açoriava a sua juventude com doses diárias de cachaça e muito fumo, se conhecem esta personagem, vão encolher os ombros porque para eles o nome é por demais estranho. Os próprios vendedores dessa bebida dos tempos, que continua a ser consumida sem fim, também não têm memória da dita cuja. Jamais ouviram falar desse nome porque não são os mesmos de outrora. Os desse tempo também foram levados pelos ventos, ou morreram, ou suicidaram-se como Evelina Nhassengo.

Eu conheço-a bem. Já partilhei com ela momentos inolvidáveis, numa altura em que tínhamos a bebida como ignição para as conversas e música que brotava das nossas cordas vocais e das cordas da guitarra. Evelina Nhassengo era o centro dos encontros da juventude, uma juventude que fenecia a cada gole e a cada puxo do cigarro e de outras coisas, sem nos apercebermos de que estávamos caminhando ao encontro do abismo. Não tínhamos noção porque a esbórnia permanente dava-nos a falsa sensação de bem-estar.

Evelina Nhassengo gostava de cantar e dançar quando a bebida lhe subia à cabeça. Conversava alegremente, sem se importar com os ponteiros do relógio. Era culta, asseada, ao contrário de muitos que iam ao “senta-baixo” a fim de sujar a alma. Mudava de roupa todos os dias, mas não conseguia disfarçar os dentes, bem alinhados e fortes, queimados, porém pelo fumo consumido sem parar, e depois expelido para poluir à todos. Ainda assim tinha um sorriso contagiante.

Eu também era asseado, nem tanto como Evelina Nhassengo, mesmo frequentando, nos meus tempos da pior miséria, os “senta-baixo”. Sempre fui limpo, até aos dias de hoje, e os que me conhecem de perto não têm dúvida sobre isso. Mas eu estou a falar de Evelina Nhassengo, agora com mais de 70 anos de vida vivida em liberdade. Ela treme nas bases, mal consegue andar, e o seu olhar é de total desolação.

Senti um aperto no coração quando ouvi o nome de Evelina Nhassengo ser pronunciado em saudação por uma mulher sentada numa banca a vender camarão, no mercado da Mafurreira, na cidade de Inhambane, numa manhã que será para sempre inesquecível. A vendedeira chamava por uma anciã que passava ao longe apoiada num cajado. Olhei para ela e reconheci-a logo apesar da posição penosa do seu corpo outrora esbelto e vivo. Não contive as emoções!

– Bom dia, Evelina!

Saudei-a cordialmente em bitonga, minha língua, língua da Evelina Nhassengo, também. Olhou para mim com indiferença e não me respondeu. Insisti quando percebi de que não estava a reconhecer-me. Ela sempre gostou de mim, e não seria hoje, depois desse tempo todo, que iria ignorar-me.

– Sou eu, Xande!

Evelina Nhassengo tremeu o braço que segurava o cajado quando ouviu o meu nome. Incidiu profundamente o olhar para dentro de mim. Sorriu, e reparei que os dentes continuavam lá, todos. Fortes ainda. Queimados ainda. Pelo fumo. Evelina Nhassengo estava limpa. Como naqueles tempos. Como sempre.

– É você, Xande?! Meu amor! Dá-me um abraço!

Apertei suavemente a mulher que sempre existiu na minha vida, num namoro platónico. Ela também tentou apertar-me, mas os braços dela vacilavam. O cajado caiu. E eu jamais vou esquecer as palavras fulminantes que Evelina Nhassengo me disse quando a devolvi o suporte. Ela disse-me assim: Xande, ainda me amas?

 

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