Revista Tempo

Revolta à colonização mental em “Nhinguitimo”

Por: Jéssica DjedjePreto e branco: duas cores, duas raças, duas nacionalidades, duas realidades. É nesta constante dualidade que, em 2021, o cineasta moçambicano, Licínio Azevedo, lançou Nhinguitimo, uma curta-metragem adaptada do livro Nós Matamos o Cão Tinhoso, do escritor Luís Bernardo Honwana.A obra cinematográfica decorre no ano de 1960, na então Lourenço Marques, Vila do Vale do Rio Incomati, e retrata a opressão que o povo moçambicano sofreu por parte do sistema colonial português antes da independência. A escolha da fotografia monocromática (preto e branco) realça a narrativa, dando intensidade às emoções vividas pelos personagens.A trama começa por mostrar o contraste gritante que há entre negros moçambicanos e brancos colonialistas, separados apenas por uma parede de distância, no bar de um português. É aí onde surge Alexandre Vírgula Oito Massinga, personagem principal da obra, um homem com pensamento livre e, portanto, com sonhos maiores que a sua realidade. Vírgula Oito possui uma pequena porção de terra fértil próxima ao rio, de onde tira o seu sustento e prevê aumentar a produção de milho e multiplicar os seus rendimentos. Porém, o proprietário do bar, Rodrigues, que conhece o potencial do vale explorado por Vírgula Oito, solicita que o administrador lhe conceda as terras, o que, materializado, causa a revolta daquele camponês.Durante o enredo, pode-se notar como algumas das acções do actor principal reflectem a moçambicanidade. Alguns exemplos são: Vírgula Oito, através do conhecimento empírico, faz projecções precisas sobre a colheita, trabalha e pensa em como melhorar as condições de vida da sua família, e usa o nhinguitimo, vento sul, na língua ronga, que antecipam a chegada do verão(Ferrão, 2021), para aumentar a sua força de lutar.O medo, uma das consequências da opressão colonial, é evidenciado através do comportamento de Matchumbutana e Maguiguana, amigos de Massinga, quando o aconselham a desistir do seu plano de produzir mais e aumentar o seu rendimento porque isso enfurecerá aos brancos colonialistas. Na cena, nota-se no protagonista o primeiro sinal de resistência através da sua indignação com o facto de não poder usar livremente, no seu próprio território, as terras que, de forma honesta, herdou dos seus antepassados.A resistência é ainda mais visível e percebida através da postura confiante, voz firme, passos determinados e argumentos fortes do personagem principal. A soma destes aspectos pode ser considerada uma lição de antagonismo a um sistema opressor, uma vez que sugere a mensagem de que não importa como controlem os bens e até os corpos das pessoas, enquanto se mantiver a mente livre, o caminho para a independência torna-se possível.Num claro contraste na forma de pensar, Matchumbutana e Maguiguana sequer vêem um futuro livre da dominação colonial, já que as grades que lhes foram impostas são tão eficazes, que eles acreditam que sua única possibilidade de sobrevivência e sustento, é trabalhar para o colono e receber o que este quiser lhes dar em troca. A incerteza cegou-os de tal forma que já não se vêem como cidadãos de um país e, por isso, com direitos inalienáveis como a liberdade.Apesar do ambiente hostil que se vive, Massinga resiste e pondera contrariar o sistema colonial. Para tal, incita o seu grupo a uma possível revolução, mas este, incluindo seus dois amigos, deixam-se dominar pelo medo e insegurança, e viram-lhe as costas, numa evidente demonstração de covardia e desesperança.Enfurecido pela passividade dos seus amigos diante das injustiças sofridas, o protagonista ataca um deles, que, aliás, a esta altura já é visto como traidor, uma vez que a recusa em lutar contra o colonialismo pode ter sido interpretado como conivência com este mesmo sistema. Massinga parece ter assumido que a não oposição torna-os, também, inimigos. Por isso devem ser combatidos. Estas cenas revelam as sequelas que a opressão colonial deixou nos moçambicanos, já que até a actualidade nota-se esta inércia perante várias formas de injustiça que são vividas. Matchumbutana e Maguiguana reencarnam em cada moçambicano que se subordina à humilhação por causa do pão, que se cala perante a violência, que baixa a cabeça diante da corrupção e que fica indiferente às desigualdades sociais.Em contrapartida, a coragem da personagem principal, Vírgula Oito, ao escolher combater, mesmo com os riscos inerentes a esta decisão, pode assemelhar-se ao posicionamento dos activistas sociais do nosso país, que têm se levantado e se colocado na linha de fogo para promover o despertar social e lutar pelo bem comum.Para alguns espectadores, a narrativa aberta, da curta-metragem, pode ser considerada uma decepção porque transporta-os imediatamente do clímax, para a frustração de não se ter uma solução para o conflito. Ou seja, o facto de a história não ter um desfecho, pode reduzir o impacto memorável sobre quem vê o filme. Para outros espectadores, por outro lado, o fim aberto pode convidá-los a sair da sua zona de conforto, mesmo com a incerteza que acompanha as grandes mudanças, e tornar-se protagonista na construção da história de Moçambique.Vírgula Oito é Nhinguitimo. Vírgula Oito representa a revolta de cada negro do seu espaço, que tem de trocar o seu nome, desacreditar os seus deuses, abandonar a sua cultura e perder a sua identidade.A postura de Vírgula, associada à força do nhinguitimo e ao ribombar da trilha sonora, é tão forte que pode despertar nos espectadores o inconformismo e a ira, não apenas contra o colonialismo português, mas contra toda a forma de neocolonialismo que ainda existe.Ficha Técnica Título: Nhinguitimo Realizador: Licínio Azevedo Género: Ficção, 22 min. Produtor: Jorge Ferrão Co-produção: Ébano Multimédia / Mahla Filmes

Fonte:O País

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