Há três grupos envolvidos nos crimes de rapto. O primeiro é o que pensa o crime, o segundo é o que rapta a vítima e o terceiro é que cuida do raptado no cativeiro. Esta teia faz com que o rapto seja considerado um crime organizado e difícil de combater, até porque, em geral, os integrantes não se conhecem.
Os raptos entraram no país em 2011, pelas portas da capital do país. Tiveram os empresários como mercadoria, alojaram-se em Moçambique e, em quase 12 anos, tornaram-se num crime organizado.
Para a execução deste crime, há três grupos envolvidos. O primeiro identifica a vítima que será raptada e faz a negociação do valor do resgate. O segundo, muitas vezes munido de armas de fogo, é que vai buscar a vítima, e o terceiro é que se encarrega de cuidar da vítima no cativeiro.
É esta teia que faz com que os raptos sejam um crime organizado. Foram registados, em todo o país, cerca de 100 raptos entre 2011 e 2023.
O grupo que mais dá as caras quando se fala de raptos é o segundo, o que vai buscar a vítima, depois de identificada.
São os indivíduos que se expõem ao risco de serem vistos e detidos. Recebem todas as informações sobre a vítima e só devem levá-la a um ponto, onde a deixam para ser levada por um outro grupo.
Um dos aspectos que chama a atenção neste grupo é que, geralmente, está munido de armas de fogo e conhece as técnicas para desarmar os seguranças dos empresários. E mais: as armas que usam, sobretudo as AK47, são as mesmas usadas pelas nossas Forças de Defesa e Segurança.
O “O País” sabe de fontes seguras que parte do segundo grupo do esquema de raptos são agentes considerados infiltrados na Polícia da República de Moçambique, Serviço Nacional de Investigação Criminal e outras unidades das Forças de Defesa e Segurança.
A informação a que tivemos acesso é fundamentada pelo director-geral do SERNIC, que assume haver, na corporação, agentes ao serviço do crime.
“Para fazer face à criminalidade organizada e transnacional, devemos ter um quadro de pessoal, devidamente treinado e formado, para que, com devoção e perícia, exerça com plenitude a sua actividade profissional e em estrita observância dos princípios da instituição. Para tal, urge a purificação da força das nossas fileiras, desmantelando aqueles que participam e colaboram com o crime organizado”, indicou o director-geral do SERNIC, Nelson Rego, no dia 07 de Novembro de 2023.
Os que colaboram com o crime organizado estão infiltrados e conhecem as técnicas de investigação para usá-las a favor do crime.
“Estamos preocupados com a infiltração dos criminosos no nosso seio. Não podemos continuar a ter casos de assaltos à mão armada, raptos e violações perpetrados por indivíduos que ingressam nas nossas instituições para o efeito”, mostrou-se preocupada Beatriz Buchili, procuradora-geral da República, no dia 15 de Março de 2022.
Porque já podem ter-se infiltrado, a ex-ministra do Interior propôs a purificação de fileiras. “Encorajamos os esforços empreendidos pelo SERNIC na implementação de medidas com vista à purificação de fileiras. Esta deve ser uma acção permanente e cada vez mais acutilante para que o crime organizado não logre infiltrar-se no seio dos agentes do SERNIC”, apelou Arsénia Massingue, ex-ministra do Interior, em Dezembro de 2022.
Em 2022, a Procuradoria-Geral da República deteve dois agentes das Forças de Defesa e Segurança acusados de vários crimes, entre os quais sequestro, tráfico de drogas e porte ilegal de arma. Esta é uma prova inequívoca de que há infiltrados e urge fazer a purificação de fileiras.
Na nota de 16 de Fevereiro de 2022, a Procuradoria-Geral da República diz que, dos dois detidos, um é da PRM e outro do SERNIC, ambos afectos às brigadas de combate aos raptos e criminalidade organizada na Cidade e Província de Maputo.
Os agentes, detalha a PGR, perseguiam uma cidadã que, posteriormente, se envolveu num acidente de viação, no município da Matola, tendo sido raptada depois.
Após raptar a cidadã, os agentes pretendiam apoderar-se de bens, drogas, valores monetários na posse da vítima, uma vez que ela se dedicava ao tráfico de drogas. Ameaçaram-na e agrediram-na fisicamente, com recurso a armas de fogo do tipo pistola e AKM.
Essas foram das poucas vezes em que os agentes das Forças de Defesa e Segurança foram apanhados e expulsos por envolvimento em crimes de rapto.
Os dois agentes das Forças de Defesa e Segurança, acima mencionados, quiseram assumir tudo, mas não é bem assim que a coisa funciona neste crime organizado.
O terceiro grupo que aqui destacamos é o que cuida da vítima no cativeiro.
“Eu não fiz nada. Eu soube que era rapto depois e disseram para eu não tentar fugir. Tinha de ficar com a moça (a vítima) no quarto. Eu não saía de lá. Eu tinha uma cadeira e ela ficava numa cama”, contou um dos detidos pelo SERNIC, no dia 21 de Dezembro de 2023, e que cuidava da vítima no cativeiro.
Estes indivíduos sequer conhecem os restantes integrantes da quadrilha. “Não sabia que tinha uma moça. Eu passava todo o dia fora de casa. Eu só ia no fim do dia deixar uma refeição para ela”, disse o indiciado, num tom de total desconhecimento de que estava a participar de um esquema de rapto.
E há indiciados que dizem mais: “não sei quem me mandou. Só sei quem me chamou. É o Tony, e está na África do Sul. Não sei se aceitei por ganância ou dinheiro fácil. Afinal, era só acordar e sentar com a pessoa. Cozinhar e dar-lhe comida. Nesses cinco dias que fiquei com a pessoa, não chegaram a torturá-la”.
Sabem, apenas, da existência de alguém que os contacta para este tipo de trabalho e, geralmente, é uma pessoa que faz a ponte entre eles e os cabecilhas da operação.
Além de negociar com o grupo que cuida da vítima, o indivíduo que faz a ponte entre os integrantes da quadrilha também se encarrega de procurar a casa que serve de cativeiro.
No processo de arrendamento da casa, nem o proprietário da residência faz ideia de que está a entregá-la para servir de cativeiro. “Aquando do arrendamento, eu disse que precisava de alguém para apresentá-lo ao chefe de quarteirão, mas disseram para não ficar preocupada porque ninguém viveria na casa”, contou Ester Chissano, proprietária de uma das casas que serviu de cativeiro, até ao dia 19 de Junho de 2021.
O comportamento dos “novos inquilinos” era suspeito. “Uma das coisas que nós vimos é que todos os dias, eles tinham o hábito de, por volta das 18 ou 19 horas, tocar música a um volume muito alto, mas não sabíamos qual era o motivo”, desconfiou Reinaldo Moyane, vizinho de cativeiro.
A vítima que estava em cativeiro, neste último caso, é um jovem de 31 anos de idade, de nacionalidade indiana e, para o resgate, os raptores exigiram 600 mil dólares. Mais uma vez, um agente da Polícia esteve envolvido no crime.
“Isto não era uma questão de crime, como tal. Era, simplesmente, para ir assustar um pouco a pessoa. Por se tratar de alguém que faz lavagem de dinheiro, então, tinha o valor e não haveria nenhum problema”, justificou o agente da Polícia, indiciado do crime de rapto.
Muitas vezes, os integrantes desta teia não se conhecem. Por isso, é comum ouvir do detidos e apresentados pelo SERNIC que não sabem do cativeiro e desconhecem os mandantes.
Os indivíduos que, geralmente, são apresentados pelo Serviço Nacional de Investigação Criminal, indiciados de crimes de rapto, têm respostas comuns.
“É só pedirem ao SERNIC para fazer mais o seu trabalho. Devem ver e investigar mais”, disse um dos indiciados de rapto detido, em 2022.
E o detido no dia 25 de Julho de 2023 conta que nem sequer conhece os contornos do seu chamamento para o crime. “Quando cheguei, vieram buscar-me, vim ficar aqui e, mais logo, trouxeram uma pessoa. Trouxeram um indiano para ficarmos com ele. Disseram para ficar com a pessoa. Só isso. Eles disseram que queriam negociar com ele. Queriam tirar um dinheiro. Nós não estávamos armados, mas havia uma arma que tinham deixado quando trouxeram a vítima”, detalhou o indiciado.
A detenção destes indivíduos pelo SERNIC não resolve, muitas vezes, os crimes de rapto. “Esses são actores primários. São os que executam os crimes de rapto, assim como outros, como é o caso de roubos com recurso à arma de fogo”, revelou Hilário Lole, porta-voz do SERNIC, na Cidade de Maputo, no dia 29 de Janeiro deste ano.
Os que compõem o primeiro grupo, os cabecilhas dos raptos, são que comandam as operações, a partir do estrangeiro ou de qualquer canto do território nacional.
Uma das bases dos cérebros que comandam as operações de raptos em Moçambique é a vizinha África do Sul.
É da terra do rand que são identificadas as vítimas a serem raptadas, a quadrilha que vai participar na execução do crime em Moçambique e se faz a negociação do valor de resgate.
Depois de raptado o empresário e colocado em cativeiro, os cabecilhas do rapto negoceiam o dinheiro do resgate que, segundo apurou o “O País”, é enviado para uma conta em Dubai, depois segue para África do Sul e, por fim, chega ao país, já livre de qualquer suspeita.
Em Janeiro de 2022, foi detido, numa operação conjunta entre as autoridades sul-africanas e a Interpol, um dos supostos mandantes de raptos em Moçambique. Trata-se de um moçambicano de 50 anos de idade.
“Foi emitido um mandado de captura internacional de um dos envolvidos nestes casos de rapto e a resposta é esta, que vocês acompanharam, a detenção deste cidadão na África do Sul para poder responder ao que pesa sobre si”, explicou Arsénia Massingue, no dia 09 de Janeiro de 2022.
A nível do país, em 2014, o então procurador-geral da República, Augusto Paulino, tinha denunciado que alguns raptos são orquestrados nas cadeias.
“Alguns desses raptos são planificados na cadeia da B.O e já ocorrem, também, nas celas do Comando da PRM, na Cidade de Maputo”, revelou Augusto Paulino, antigo procurador da República, no dia 09 de Julho de 2014.
Em Julho de 2022, no julgamento de três indivíduos acusados de tentativa de rapto, na cidade da Beira, um agente do SERNIC envolvido na sua detenção, revelou ao juiz do caso, na condição de declarante, que o líder da quadrilha estava detido na Cadeia Central da Beira, a partir de onde orquestrava os raptos.
Fonte:O País